segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

êxtases

"Um dia me chamaram primitivo:
Eu tive um êxtase.
Igual a quando chamaram Fellini de palhaço:
E Fellini teve um êxtase"


(Manoel de Barros, in. Retrato do Artista quando Coisa)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

morre a paixão delirante e fica a covardia mercenária

sobre o evento covarde de ronaldo coloco um texto do meu irmão Eduardo.. sem mais, por hora..


Decepção e Revolta
(por Eduardo Carvalho)

Triste.

O craque da minha geração, um ídolo brasileiro e, acima de tudo, rubro-negro, foi-se embora. Treinou na Gávea, se recuperou na Gávea, assistiu aos jogos do Flamengo e agora vai para São Paulo. O mais frustrante é ver o Rio de Janeiro simbolicamente sucumbindo, assim como o emblemático naufrágio da caravela portuguesa. Um Estado sem comando, sem governo e sem poder de barganha, assim como o Flamengo. Entretanto, mesmo com as anomalias de seus dirigentes, o Mais Querido abriu as portas para o Fenômeno. Abriu as portas da esperança. Não que eu achasse que ele iria realmente jogar, mas com certeza levaria ao velho Maracanã a áura de um mito. Isso é muito importante para o futebol carioca e, sobretudo para o Flamengo. Gerheim, meu chefe na época do Jornal dos Sports, é um maluco, um doente apaixonado pelo Botafogo. Ele guarda consigo o amor a um clube e a eterna esperança de ver os craques de volta aos gramados do RJ. Gerheim disse uma vez no trabalho - em ocasião drástica que envolvia demissão e tudo mais - "COVARDE!!!". Eram sentimentos profundos de um idoso. Disse aquilo com coração, com raiva e com amor aos seus ideais. Para essa nova situação, também desabafo: Covarde! Mil vezes Covarde.

domingo, 30 de novembro de 2008

grupos de extermínio - de machos - e anedota do barão de itararé

Foi traduzido e será lançado aqui na Espanha, em dezembro, o diário de Andy Warhol. Depois de ler os últimos suspiros do escandaloso Luís Buñuel, creio que viria bem ler esse outro diário. Hoje, pela manhã, li um trecho que foi publicado no "El País". De cara, já me interessei. Imaginem vocês que Warhol foi atacado por Valerie Solanis, membra de um grupo feminista radical, a "SCUM" - iniciais em inglês de "Sociedade Para o Extermínio do Macho". Isso mesmo senhores, existiu - ou existe ainda, vai saber - um grupo de mulheres que queriam exterminar, a ação é essa mesma, todos os homens do planeta. Porque o sujeito era homem, cabra macho, elas dizimariam. Arrancariam os bagos, trucidariam os varões e enterrariam em vala comum. Outra opção seria tacar fogo nos corpos e dançar ao redor de uma fogueira. A existência de um grupo como esse não deixa de causar um certo assombro.. um frio na barriga. Se ainda exitem podem está espreitando nossos lares e preparando um plano de assalto ao poder. Quem sabe? De repente, estão mais organizadas do que imaginamos..


Nessa semana a Índia dos pranayamas, das iogas e de Ghandi viveu dias de terrorismo insano, graças a intervenção de mais um grupo extremista. Há exatos 45 anos, esse grupo de extermínio de machos atacavam Andy Warhol e, dias depois, o Kennedy seria asssassinado. Contrastando com os assombrosos eventos em Bombaim, não pude deixá de me divertir com a leitura de um grupo dessa estirpe que tentou matar o artista pop. O que mais surpreende, além do nome, é o alvo que ecolheram para atacar. Segundo Warhol, o grupo era homofóbico e defendiam um mundo feminino, maravilhoso e genial. Noutras palavras, sem machos ou com machos escravos, sendo explorados pelas abelhas rainhas.


ooo


Em épocas de terrorismos, de falta de humor, de repetições sem variação dos mesmos temas, ou como diria Breton a Buñuel, na década de 50, "hoje em dia, não há mais lugar para o escândalo". Nessa toada, lembro uma anedota do irreverente Barão de Itararé. Ele publicou uma série de reportagens sobre o João Cândido, o Almirante negro, herói da revolta da chibata, de 1910. O barão foi sequestrado e espancado por um grupo de oficiais da marinha - jamais identificados. Ao regressá do passeio, escreveu na entrada de seu gabinete: "Entre sem bater"..


segunda-feira, 17 de novembro de 2008

viajar com-viver

Alexander Supertramp abandonou o american way of life e botou o pé na estrada, deixando para trás, todos os resquícios de sua vida capitalista e burguesa. Doou o dinheiro que seus pais lhe deram para pagar a faculdade, queimou os últimos dólares que carregava. Peregrinou, errante, e buscou os meios para ir ao Alaska, onde viveria solitariamente e longe das leis moralistas da sociedade que vivia. Em seus últimos dias, viveu num caminhão, que encontrou no meio das montanhas geladas desse anexo dos Estados Unidos. Depois de ingerir, por engano, uma raiz venenosa, morreu, lentamente, por inanição. Escreveu, já sem forças e com os seus últimos suspiros, nos cantos de um livro: “a felicidade só é felicidade quando compartilhada”. Essa frase foi escrita entre um parágrafo e outro de um livro que trazia consigo. Suas forças esvaiam-se dia após dia, morreu por inanição, porque não conseguia comer, o estômago rejeitava tudo e, desse modo, foi enfraquecendo até a morte.


Daí emergem várias questões. Fico pensando se a cultura ocidental pensa assim quando privilegia a genialidade individual. Não seriam os rastros de uma cultura do herói, a dizer, de uma cultura messiânica? Estamos imersos – eis o triunfo do liberalismo – numa sociedade do indivíduo, onde a harmonia coletiva é relegada a segundo plano.


Assisti a uma palestra de Agnés Agboton, no seminário “De Pedra e de Palavra: vozes de Pafrica e Ásia”, em Santiago de Compostela e organizado pelo Centro PEN da Galiza. Agboton é do Benin, mas vive na Espanha há muitos anos. Segundo a escritora, na cultura do Benin e de vários outros países – ou etnias, pois num mesmo país, encontramos mais de uma – africanos valoriza-se a harmonia coletiva. A idéia de indivíduo não é central para eles. Ouso dizer que, na engrenagem cotidiana dessas sociedade, nem sequer existe um lugar para esse indivíduo genial e egóico. Somos bilhões de seres humanos lutando uns contra os outros para sermos o herói do filme. Identificamo-nos com a protagonista. Agnés Agboton disse: “a pessoa é muito importante para a outra”. O que está em questão é o modo de convivencia. E arrematou: “indivíduo, só o bruxo”.


Eu já havia escutado de um babalaô – sacerdote ou “bruxo” ioruba que consulta o oráculo de Ifá – que isso também acontecia entre os iorubas, situados hoje na Nigéria e numa pequena parte do Benin. Esse babalaô me contou: quando um sacerdote de Ifá consulta o oráculo, um odu desce a terra. Este é um símbolo que narra uma série de mitos e ebós para abrir os caminhos e livrar o consulente dos aspectos negativos. Dentre os iorubas, o que importa é recitar as palavras mágicas e realizar o ebó. Desse modo, a harmonia coletiva é mantida. Os dramas psicológicos do consulente não são levados em consideração. Quando o oráculo ioruba atravessou o Atlântico, em diáspora, devorou as culturas indígenas e européias. Logo transtornou-se numa consulta psicologizante. Em alguns casos, substitui a psicologia ou a psicanálise, uma vez que para as classes menos favorecidas torna-se inviável manter um processo de análise. A psicanálise popular são os búzios das mães de santo!


A nossa cultura valoriza o indivíduo e sua mixórdia de eventos e problemas ordinários. Esses indivíduos todos anseiam por soluções aos seus problemas. Querem harmonizar as suas vidas pessoais, a saúde da família, o marido ou esposa que não chega, o trabalho que não têm, as contas que não consegue pagar e etcétera. “A vida... a vida é etcétara!”, diria Riobaldo.


A antropofagia ioruba na diáspora é fascinante e riquíssima. A psicanálise popular, tropical e embruxada é revolucionária. Lembro, todavia, a harmonia coletiva, de que falava Agnés Agboton. Esse é um gesto necessário para os dias de hoje. A felicidade compartilhada no espaço entre um parágrafo e outro. Essa felicidade decorrente da harmonia coletiva, nem que rasuremos o livro, acrescentando uma frase que escapou ao autor. Uma harmonia coletiva onde nossas perspectivas individuais sejam postos de lado e, assim, possamos experimentar uma outra sensibilidade, um outro modo de convivência, outras saídas e entradas em nosso mundo contemporâneo.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

(diário galego)

san lourenzo 46, terça 11 de novembro de 2008


Ando em crise com o Eu que escreve, que se desenha num suposto diário. Um Eu identitário que narra seus dramas e peripécias de viajante. Admito que parte dessa crise se dá porque nada de interessante acontece comigo. Não faço nada a não ser ir aos festivais de cinema, escrever emails para saudosos amigos e parentes e para a mulhé que amo. Não mexo muito nas “desordens das fantasias”, o diário on line – vulgo blog. Por isso, pouco escrevo nesse espaço formalizado para as confissões de inconfessáveis acontecimentos. Emoção e adrelina de andarilho aprontando pelas ruas galegas de Santiago. Não tem sido assim.


Estou lendo a confissão, essa sim emocionante e, até certo ponto, coletiva – geracional – de Luis Buñuel. A geração de 27, contanto, entre outros, com ele próprio, Salvador Dalí, Frederico García Lorca e Pepín Bello transtornou o cenário artístico espanhol e mundial. O curioso é que saí do Brasil para vir à Espanha, buscando algo menos provinciano e careta que o Rio de Janeiro. Como dizia Nestor Perlongher, o Brasil tem uma cultura viva, potente, cuja mescla produz revoluções culturais constantes, ao passo que, no dia a dia, somos de uma caretice sem par. E leio uma passagem de Buñuel que narra sua chegada à Paris, em 1925. Segundo ele, uma coisa saltou aos seus olhos espanhóis – e olha que não era galego, mais tradicional ainda - : casais se beijando e se atracando à plena luz do dia e pelas ruas de Paris. E vim para cá, estou aqui. Saio da antropofagia cultural brasileira, reacionária no trato diário, para a Espanha, o país onde os casais, até bem pouco tempo atrás, não se beijavam nas ruas. Porém, é a Espanha de Buñuel e a via láctea de Santiago pôde ser vista sob suas câmeras – alívio..

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"o que que o baiano tem?"


ele é ex-pescador, come acarajé todos os dias, preparado pela mãe, com quem vive. começô a jogá bola, no futebol profissional do vitória, quando já passava dos 20 anos. dizem que um olheiro do clube baiano, de férias na costa repleta de coqueiros, água quente e cristalina e um sol de lascá da bahia, viu uma pelada em que o anjo negro destruiu. jogava descalso, na areia macia do litoral nordestino. depois disso, virô ídolo no vitória e atraiu a atenção do flamengo. não tardô em conquistá a torcida do mais querido. ganhô música e no auge da carreira se contundiu e desfalcô o time da gávea em sua campanha da libertadores do ano passado.

parafraseando dorival caymmi: "o que que o baiano tem?". por onde passô, deixô sua marca. muitos gols, alguns bonitos, como um de bicicleta alguns anos atrás e outros por pura sorte. tem o faro dos artilheiros e presença de área. num chega a sê um craque, como o romário.. ouso dizê que é ruim.. mas, tem o carisma dos grandes líderes. talvez seja o tempero que a mãe coloca nos acarajés diários.

barack obina neles!!

terça-feira, 21 de outubro de 2008

a travessia ou encontrovérsias insólitas > a saída

"Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia" (Guimarães Rosa).

A viagem é um movimento de saída de nossos hábitos – nossa perspectiva –, de um espaço-tempo em que estamos acostumados a viver e entrar numa outra dimensão – desemdida. Viajamos com o auxílio de uma droga, de um transe meditativo ou de incorporação ou mesmo um deslocamento físico a outro lugar. O que está em questão em qualquer dessas experiências é o deslocamento espaço-temporal do sujeito. A saída de seus limites e o seu encontro consigo mesmo.
Em Grande Serão: Veredas, Guimarães Rosa – ou Riobaldo – narra a sua experiência de sobrevivência e travessia no sertão. Repete(m) incessantemente que “viver é perigoso”. Por ser perigoso abre-se para o insólito a todo instante. O inusitado nos acompanha, nos assalta a todo momento. Ressaltar a travessia é compor “lares provisórios”, como quer Edward Said. Não há refúgio para o indivíduo com seus dramas internos e externos. Estamos sendo, acontecendo em fluxos de energia e sangue – jorros iridiscentes, para o argentino tropical – nas encontrovérsias do mundo entre os nosso arranjos e o imprevisível.
A travessia insólita se renova a cada encruzilhada. A cada instante que permitimos nosso encontro com o outro – transe – onde nossos hábitos são postos em questão e descobrem novas perpectivas - devorações. Viver em trânsito é experimentar o outro. Em sintonia, sincronia e simetria – na diferença – liberando o xamã de cada poeta.
E foi assim que Perlongher viveu a vida. É assim que vivi e vivo para escrever esse ensaio. Escrevivendo no tráfego, entre engarrafamentos, acidentes, auto-estradas, “humo” na estrada de Rosário à Buenos Aires.
Nestor experimentou com a antropologia e a literatura no Brasil, seguindo o grafite que cita numa entrevista: “por uma Argentina tropical e pagana!”. Em São Paulo e no Acre tentou encontrar essa Argentina, essa América Latina. Sua pesquisa acadêmica foi ensaística e de campo, nas ruas. Entre os michês, a militância gay, a poesia e o Daime. Experimentou o transe – escreviveu. Através de sua poética liberadora devorou a experiência de ser outro. Foi o michê e o caboclo do Daime – o poeta liberado.
Um outro tempo, um outro topos, um outro. Encontrvérsias com o outro, com o eu, onde esses limites já não importam. Composições exprimíveis e inexprimíveis materializando-se numa escrita curacriativa, rastreando o Acre, o ayahuasca, São Paulo, os michês – o tropical pagão.

sábado, 18 de outubro de 2008

parênthesis > outras perspectivas do eu

A verdade é que pela meditação você se torna cada vez mais você (David Lynch)

Qual o lugar do indivíduo nas sociedades tribais africanas ou indígenas? Como o candomblé, a umbanda, o Daime, enfim, essas espiritualidades brasileiras e contemporâneas resignificam a construção histórica da identidade? Como dialogam as noções coletivas dessa religiosidade com a produção da subjetividade capitalista?

"La producción de subjetividad capitalista produce individuos, hay que recordar que el individuo es una invención relativamnte reciente. En una tribu, la subjetividad no produce individuos. El individuo es una forma de subjetivación históricamente determinada. Los marginales, los locos, los negros, los indios están iniciando modos disidentes de producción de subjetividad" (Perlongher, 2004, p. 296-7).

O candomblé seria uma antropofagia negra brasileira da ancestralidade africana. Uma criação pau-brasil. Uma faísca dissonante, oriunda da diáspora negra. O Daime devora o uso ritual e espiritual da ayahuasca. Essas religiosidades, com suas normas e seus êxtases devoram a perspectiva da identidade racional ocidental e germinam outras perspectivas. Refletindo sobre o candomblé: o iyaô é um filho de santo, não pode ser entendido isolado e independentemente da família de santo e da linhagem da qual faz parte. Ser filho de um santo significa ser canal ou mensageiro daquele axé e segue uma linhagem ancestral de antepassados do mesmo tronco. Além disso, o iyaô tem um ori (cabeça) e um odu (um signo de vida): ori possibilita seu livre-arbítrio, suas escolhas e o odu narra seus ires (facilidades, aptidões e positividades) e seus osogbos (dificuldades, inaptidões e negatividades). Outra perspsctiva convivendo com o indivíduo analisável da psicanálise.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

a antropofagia – perspectivas

Experimentar o outro... ser o outro por um cenátimo... não dizer ou perguntar quem é o outro
- experimentá-lo –

aí mora o perigo e viver, lembra Riobaldo, é perigoso. Se vivermos os outros pensamentos, outros "locus de enunciação", como diria Walter Minolo, nos libertamos dos enlaçes do pensamento colonizador. Aí devoramos as Europas, os Brasis, os Índios e as Áfricas...
num giro
– ou numa gira de santo –
nos tornamos ameríndios, iorubás, negros mina, caboclos.
Recebemos os guias dos donos da terra.
Somos o caboclo tal e escrevemos com os caboclos, xamãs, ancestrais africanos, com os animais, com meu tio Iuaretê
– vida antropofágica ou devorações -
Composições deglutidas e digeridas. Conforme nos abrimos às afetações do mundo, aumentamos o risco. Maior o perigo, maiores os acidentes - dimensão incidental e insólita da vida. Não estaremos mais à salvo, fazendo o mesmo, aquilo que estamos acostumados a fazer, nosso hábitos reativos - reflexos tidos como instintivos.
O que são esses instintos? Quem determina o que é instintivo e instrínseco à nossa natureza humana e o que é adquirido pelo processo de socialização numa cultura? Talvez não importe. Tudo é artificial, recriado pelo homem em sua relação com o mundo - ação da natureza, logo do homem. Devorações de isso e aquilo, tudo ao mesmo tempo - sincronia. Economias e gastos desperdiçados.
"De seu lugar de espreita, o guerrilheiro aguarda o momento oportuno", são as palavras de Che Guevara. Que momento oportuno é esse? O de saltar nos confins do mundo, se pôr para fora, sair de si. Reintegrar-se ao mundo imbuído de forças e potências. Daí, conduzi-las com uma ação ética - gerar compaixão e ternura. Por mais que o guerrilheiro crie uma economia da sobrevivência, está aberto ao dispêndio de sua vida, aos perigos insólitos. Devorar e delira com rigor, isto é, dentro dos "locus de enunciação" que elegeu para sua luta.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

corpo exausto pelo gasto - liberando serotonina e endorfina ou conversas com a gamo

Narra Riobaldo: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (Rosa, op.cit., p. 80). Só há a experiência – a travessia na vida, pelos lares provisórios. Além disso, restam o ego, os objetivos, as perspectivas – por definição injustas, como diria Nietzsche – e a economia dos prós e contras. Na travessia, o excesso é desperdiçado – o andarilho esvazia a mochila para diminuir o peso. É gasto na geração de endorfina e serotonina, hormônios produzidos com o suor, com o movimento, no dispêndio do corpo que se movimenta e se exaure. Contou-me a filha do magma e pesquisadora em educação física: “a endorfina é produzida para inibir a nossa sensibilidade à dor e a serotonina é o hormônio responsável pelo prazer e o bem estar. Ambos são liberados com o exercício físico”. Portanto, no dispêndio sem a economia de controle de gasto, a filosofia é esgotar, desperdiçar-se, gozar no delírio do corpo exausto.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

zumbido

não sai da cabeça.. vai e volta.. inquietação. como uma cuíca ou um chucalho incessantes. o sono vem e não leva. não embala o suficiente, não conforta o corpo. os olhos pesam, porém não se fecham. não sai da cabeça.. vai e volta.. inquietação.. zum-zumbido. como um motor de moto - estridente - ragendo os dentes. vem vindo de longe e já sabemos que vai chegar. tão perto, tão alto e irritante. "pior do que não ter vista em casa, é não ter silêncio", ecoavam essas palavras em zum-zumbido, como um mantra irritante. não sai da cabeça.. vai e volta.. inquietação.

sábado, 27 de setembro de 2008

(dar forma ao pe')

no calor tropical do Rio, eu uso sandalias.. pe' ao ar livre. Em terras galegas, ja' näo posso mais. Tenho que usar sapatos. Acontece que näo sei. Näo sei como comprar sapato, näao sei qual o tamanho que calco. Opto pelos sapatos maiores, que fiquem frouxos no meu pe' - saem - para ele continuar dancando livremente dentro do calcado fechado. Em Santiago de Compostela, alem de frio, chove o tempo todo. Afora os sapatos, tenho que comprar roupas, como calcas e cassacos. Logo eu que defendo uma tese escrita na praia, cuja roupa näo passa de uma sunga. Na praia, o pensamento estira-se no horizonte sem fim, nadando ou voando para alem. Na praia, estou semi nu e descalco.

Para viver fazemos concessöes 'as N(F)ormas. Inclusive na praia, onde estamos expostos ao calor, ao vento, 'a areia, ao mar e o horizonte. O dificil e' conhecer a "medida certa". No caso dos sapatos, qual seria essa medida certa? Um numero maior, para que o pe' relaxe e se movimente ou um numero menor ou exato, para que o pe' forme uma unidade com o sapato, compondo juntos as passadas? Uma coisa e' certa: devo aprender a viver no frio umido e chuvoso..


segunda-feira, 8 de setembro de 2008

da grande liberação

Friedrich Nietzsche escreve sobre a “grande liberação” no fragmento 3 de Humano Demasiado Humano. Para ele, estamos atados à “deveres” – ou hábitos – e a grande liberação

“vêm súbita como um tremor de terra: a jovem alma é sacudida, arrebatada, arrancada de um golpe – ela própria não entende o que passa. Um ímpeto ou impulso a governa e domina; uma vontade, um anseio se agita de ir adiante, aonde for, a todo custo; uma veemente e perigosa curiosidade por um mundo indescoberto flameja e lhe inflama os sentidos” (Nietzsche, 2005, p.9).

O jovem que vê seu mundo tremer – e desmoronar – desenvolve um desprezo – renega – pelos seus deveres e hábitos. Assim, desperta em seu âmago – como uma dor no peito – um “vulcânico anseio de viagem, de exílio, de afastamento. [...] um olhar profanador para trás, para onde até então amava e adorava” (idem). E justo aí, emerge o perigo que vem e arrasta como a maré. “Um ébrio, íntimo, alegre tremor, no qual se revela uma vitória – uma vitória?” (op. cit, p. 10).

Uma vitória enigmática contra um campo de forças? As leis do mar – a maré – pode arruinar essa vitória – “destruir o homem”. O liberto tenta “demonstrar seu domínio sobre as coisas”, sobre a maré. Atira-se com uma “avidez insaciada”. Ele revira as coisas, revolve o que está encoberto – a areia no fundo do mar –, “experimenta como se mostram as coisas, quando são reviradas”. O poder de revirar tudo lhe seduz, lhe confunde. Se isola, “a solidão lhe cerca e o abraça” – ameaçadoramente – se vê enleado naquela “desordem de suas fantasias” na solidão habitada por seus fantasmas – “quem sabe hoje o que é a solidão?” (idem).

No fragemento 4, Nietzsche afirma que desse “isolamento doentio” o espírito passa por um longo caminho até a madura liberdade do espírito, se orientando pela “vontade de saúde”. Assim, o espírito passa por uma “sensação de liberdade de pássaro”. Neste momento, ele supera os “grilhões de amor e ódio, sem sim, sem não”, da ignorância dos seres sencientes presos entre os apegos e a aversões, segundo a noção budista. Passado isso, o espírito se liberta e contempla, agradecido, suas andanças. “Como foi bom não ter ficado ‘em casa’, ‘sob o teto’, como um delirado e embotado inútil!” (op. cit., p. 11).

O espírito livre deve tornar-se senhor de si mesmo, ter “domínio sobre seu pró e seu contra, e aprender a mostrá-los e guardá-los de acordo com seus fins” (idem). A injustiça acompanha os prós e contras, é a marca de todo “perspectivismo”. Eduardo Viveiros de Castro sustenta: “Se penso, então também sou outro. Pois, só o outro pensa, só é interessante o pensamento enquanto potência de alteridade. [...] ‘só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago’” (Viveiros de Castro, 2008, p. 118). A conclusão é a citação de Oswald de Andrade. O antropólogo revira a antropofagia ao estudar uma tribo tupi – os Araweté. Segundo Viveiros de Castro, são os tupis, herdeiros dos tupinambás, os antropófagos brasileiros, em oposição ao tronco jê, do Alto Xingu, muito mais estudados pelos antropólogos até então.

Seguindo os rastros no ar desprendidos pelos estudos de Oswald, Viveiros de Castro segue o que não é dele, o que não é nosso, aquilo que demanda outras iniciações além da escrita e do pensamento conceitual e abstrato. Segundo Nietzsche, “você deve aprender a perceber o que há de perspectivista em cada valoração. [...]. Você deve aprender a injustiça necessária de todo pró e contra, a injustiça como indissolúvel da vida a própria vida como condicionada pela perspectiva e sua injustiça” (Nietzsche, op. cit., p. 12-3). Assim, cada perspectiva contém o sujeito, a valoração e sua injustiça. A perspectiva é, para Viveiros de Castro, “a afirmação de sua incompatibilidade enquanto ‘melhor perspectiva’” (Viveiros de Castro, op. cit., p. 123).

glosa > os rastros do caracol

Bernardo Carvalho, em Nove Noites, descobre o nome que os índios Krahô deram ao antropólogo note-americano, Buell Quain, que viveu dentre eles e se suicidou em 1939. O nome do antropólogo era: Cãmtwyon. Sobre seu significado, rastreia Bernardo Carvalho, atribuindo uma dedução própria:

"Cãmtwyon" pasou a ser, para mim, ao mesmo tempo a casa do caracol e o seu fundo no mundo, a casca que ele carrega onde quer que esteja e que também lhe serve de abrigo, o próprio corpo, do qual não pode se livrar a não ser com a morte, o seu aqui e o seu agora para sempre. "Cãmtwyon" passou a ser para mim o rastro do caracol: não adianta fugir, aonde quer que você vá estará sempre aqui" (Carvalho, 2007, p. 72).

sexta-feira, 5 de setembro de 2008


[Exu > glosa introdutória]
O canto de Exu é a comunicação, o sexo... Ele é o mensageiro – o trânsito – que atravessa os corpos. Para Nestor Perlongher está presente no deseo... na sonoridade desse encontro de vogais, na boca abrindo, a língua rossando os dentes e, depois fechando e deixando uma brecha para o som sair... Essa conexão é proporcionada pelas brisas das esquinas de Exu, onde o desejo se (re)produz. Perlongher “diría que el deseo es conexión, es aquell que hace entrar a las cosas en contacto, en movimiento: no es tanto lo que va de un sujeto a un objeto sino ‘entre’, entre dos, lo que realiza la conexión.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

(diário galego)

(ar, domingo, 31/o8/o8)
(Começo os "informes biográficos": serão intervenções, sempre com esse título - diário galego - nas encontrovérsias do dia a dia na Galiza..)
Atravesso a Espanha, da Catalunha até Santiago de Compostela. Sobrevôo e sinto com o corpo o que minha mente sente a cada divagação, a cada vôo. é o que quis Mishima ao tomar a decisão radical de pilotar um caça.

Inicio um outro momento em minha vida e brindo com um vinho branco – Viña Sol – e efun no ori..

Estive um dia em Lisboa, depois que perdi a conexão para Madrid e consequentemente para Santiago. Pude conhecer o Castelo de São Jorge e ver a cidade de vários ângulos diferentes. Fui ao bairro alto e ao chiado, passando pela igreja do Carmo e seu elevador panorâmico que liga a cidade alta à baixa. fiquei no hotel roma e comi bacalhau à natas com vinho branco – porta da ravessa – no bar liga dos sagres, na calçada de santo andré. Por sorte, passava o clássico português de futebol: Benfica e Sport Club do Porto.

Assim que cheguei à Lisboa me senti só pela primeira vez – completamente só. Sinto-me só e perdido – atordoado. Porém, quero estar vivo, a cada dia mais vivo e alegre. Parto – agora vôo – em busca de vida para, aproximar-se da pulsão de vida poder gerar mais vida. Em Lisboa, me senti como num fado, a sofrere e a chorare, uma cidade demasiadamente melancólica, ainda que belíssima. Lisboa deve ser vista do alto – o firmamento luso – e aí ela se abre, hipnotizante.

Estou preparado para a peregrinação, para rastrear a vida nas rotas da Galícia. Percorrer a história e a cultura celta. Ao mesmo tempo que persigo a grande liberação..

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

rastre(ar)

(morada de fátima, 11 / o1 / o8)

rastre(ar)
seguir os rastros do ar
- firmamento -

leitura
rastre(ar) a escrita
re-escrever ou recriar o texto
... escrelerescreler...

Em 2002 dediquei-me a estudar assiduamente a revolução cubana, seus antecedentes, suas influências ideológicas, seus princiapais líderes, a tomada do poder e seus primeiros anos com a introdução do socialismo cubano, experiência singular na América Latina... Com minha monografia, um caminho dentro da história e da sociologia se abria para mim... Algo faltava, entretanto...

Consultei os astros para saber a causa do meu desconforto... Samara disse-me: você deve trabalhar com arte e com os confins obscuros do caminho místico... e fui parar nos estudos de literatura e cultura...

por sorte, ou melhor por ter acumulado realizações em minhas vidas anteriores até chegar a esse renascimento e essa forma presente, com esses agregados e esses acidentes corporificados em luis felipe, deparei-me com outro agregado humano, uma mulher de incontáveis realizações, no corpo de mar, marília... e iniciei minha busca por algo inapreensível, ininteligível... por quatro anos, andei, recuei, me apressei, me irritei, adiei e odiei... oziel...

por mais esforço que fizesse o canto saía, mas não entendia o que aquelas palavras queriam dizer... inatingível... inabalável... oziel...

consultei os orixás, deitei para o senhor do pano branco... fui abençoado com seu axé... ainda assim tentei entender, precisava entender e me esforcei... tentei ir para salvador e para a nigéria... comprei livros e os li repetidamente... comprei um moleskine ou um forini, não importa... corri contra o tempo e contra o espaço – 2007 – e acabei na solidão do caminho sem ter avançado... todos me abandonaram, com escessão da gruta do mar, do laboratório alquímico na floresta de leonel, da caverna rosa, da morada de fátima, do mar rocar grisalho, da minha íntima família.

eis...
depois de quatro anos, é isso! encontrei o wu shi, minha escrituração tal como é... tal como acontece... qual nasce primeiro: a leitura ou a escrita? por isso escrevivo através da escrituração – escrita e leitura ao mesmo tempo. o texto não se fecha para daí eu escrever. ambas acontecem paralelamente... e esse é o primeiro salto. ao invés de preocupar-me somente com o meu ego de escritor, recuo para deslocá-lo, pois antes de mais nada sou leitor e sigo os rastros deixados por outros. a mata já foi desbravada, não sou o primeiro, persigo as pegadas dos que me antecederam nas veredas da literatura e do ensaio fragmentário. este tende ao múltiplo com a impossibilidade de fechar-se num centro, abre-se entre interrupções...

São de encontros que falo. Encontrar o descaminho, girando em torno do próprio deslocamento, não estando mais sob a “proteção do centro”. Para Blanchot, “encontrar é tornear, dar a volta, rodear. Encontrar um canto é tornear o movimento melódico, fazê-lo girar. [...] Errar é voltar e retornar, abandonar-se à magia do desvio” (Blanchot, 2001, p. 63-64).

O passo seguinte que rodiei foi justamente a definição de meu objeto... visualizo-o na minha frente como um holograma levitando... torneio e dou a volta, sinto em sinestesia, giro-o... é bruma esvaindo como a neblina na frente do carro em movimento... sei agora que não posso saber, que não posso existir só porque penso nele... não posso tocá-lo, ou melhor posso tocá-lo como um sólo de sax ou ouvir suas cores no delírio do verbo... Nos versos de Manoel de Barros:

“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto [a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos
O verbo tem que pegar delírio” (Barros, 1998, p. 26).

eis o meu objeto hologramático... persigo-o há 4 anos e só agora visualizo e dou à volta contornando-o, ouvindo-o com as mãos... eis uma tentativa de dar forma através da escrituração à esse objeto que encontrei...
vim ao mundo para pensar em duas dimensões humanas e suas implicações éticas: a magia e o místico... o homem, ou os diferentes agregados incidentais humanos, são mágicos e místicos... em cada cultura encontramos uma linguagem que preenche essas dimensões humanas...
no momento, reflito a arte, mais especificamente a literatura, uma linguagem como outra qualquer, que também explora essas duas dimensões...
magia – capacidade de, através de diferentes linguagens, transformar o espaço e tempo.
místico – deparar-se com o inapreensível ou a própria experiência vivida por um agregado acidental (ou incidental) humano.