segunda-feira, 29 de junho de 2009

o delírio rigoroso (parte I)

eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo

Eu era ar, espaço vazio, tempo

E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó

Eu não tinha formação

Não tinha formatura

(Stela do Patrocínio)



Néstor Perlongher (1949-1992) foi poeta e antropólogo argentino, autor do famoso poema “Cadáveres” (cf. http://www.elinterpretador.net/15NestorPerlongher-Cadaveres.htm) que denuncia as feridas abertas pela ditadura argentina. Viveu em São Paulo, onde fez seu mestrado sobre os michês e se iniciou no Santo Daime, no Acre. Apropriou-se da tradição neo-barroca da literatura caribenha, criando o neo barroso, inspirado nas águas turvas do rio de La Plata e no barro da fome miserável do povo latinamericano - herdeiros da ferida colonial. O que quero pensar, no entanto, não é essa dimensão. Proponho matutar na desconstrução identitária – esse amontoado disperso que a modernidade / colonialidade juntou sob o signo da decifração racional – forjada pelo poeta ayahuasquero. Da mesma maneira que o corpo louco e fragmentado de Stela do Patrocínio dispersou a formação individual, evaporando a formatura nos gases, no ar e no espaço vazio.


... ... ...


Néstor quer sair de si

“salir del yo”... uma poética sem ego,

mas com corpo

o corpo provisório da escrituração


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As intensidades que fluem nos corpos e nos textos foi o que atraiu o poeta argentino. Os desejos fluidos materializados na escritura, para serem resignificados com a leitura. “No es solamente cierta acumulación de palabras, sentidos y significantes sino, más bien, cierta acumulación de sonidos que pueden producir la sensación de ciertos flujos” (Perlongher, 2004, p. 290).


Qual o lugar do indivíduo nas sociedades tribais africanas ou indígenas? Como o candomblé, a umbanda, o Daime, enfim, como a espiritualidade brasileira contemporânea resignifica a construção histórica da identidade? Como dialogam as noções coletivas dessa religiosidade com a produção da subjetividade capitalista?



“La producción de subjetividad capitalista produce individuos, hay que recordar que el individuo es una invención relativamnte reciente. En una tribu, la subjetividad no produce individuos. El individuo es una forma de subjetivación históricamente determinada. Los marginales, los locos, los negro, los indios están iniciando modos disidentes de producción de subjetividad” (ibid. p. 296-7).



Procuro rastre(ar) esses modos dissidentes de produção de subjetividade. O candomblé é uma antropofagia negra brasileira da ancestralidade africana. Uma criação pau-brasil. Uma faísca dissonante, oriundo da diáspora negra. O Daime, por sua vez, devora o uso ritual e espiritual da ayahuasca. Essas religiosidades, com suas normas e seus êxtases deliram a identidade racional ocidental. Na literatura, Paulo Leminski descolonizou René Descartes, alucionando-o entre uma tragada e outro do baseado pernambucano (cf. Catatau). Esse mesmo Pernambuco que abrigou os banquetes antropofágicos do caboclo Capiroba, que tinha uma tara na cara dos “landês”, mais tenra e saborosa – cf. João Ubaldo Ribeiro: Viva o Povo Brasileiro.


Nesse modo de operação procuro aliados – uma “aliança demoníaca”, diga-se de passagem – para “darle forma a la fuerza” para que a força não se dissipe numa desterritorização absoluta. Dar forma ou codificar a potência de vida, a pulsão. Assim, operam os ritos, a linguagem, a poesia, a ciência, a meditação, a arte... “darle forma a la fuerza”.


Esta força é inefável, é potência. “Lo que trato de escribir es la descripción sensorial de la conexión cósmica y comunitaria que allí se produce” (ibid., p. 306). A experiência mística é o transe produzido pelo contato com o inapreensível – luminoso-oscuro. Atribuímos uma forma, um código para essa experiência. Operação mágica de transtorno espaço-temporal, sempre estando alerta quanto a um artificialismo retórico. “El camino de la salida ‘de sí’ es el rumbo hacia lo desconocido. Es un camino que parte del sobresalto. Parte hacia la invención de lo que no se sabe. Allí puede surgir artificialmente el retoricismo. Por eso tiene que haber el extasis serio, grave, un real desragamiento” (ibid., p. 302).


Esclareço esse “extasis serio”. A antropofagia é o modo de operação de nossas manifestações culturais. As culturas se devoram, respeitando certas regras. Para Haroldo de Campos, “o canibal era um ‘polemista’ (do grego pólemos = luta, combate), mas também um ‘antologista’: só devorava os inimigos que considerava bravos” (Campos, 1992, p. 235). É preciso ter rigor, realizar uma antologia dessa força.


O que escrevemos é o alvitre de uma saída de si, um deslocamento do sujeito, um modo dissonante de produção de subjetividades. “Lo que uno escrebe no es expresión de lo personal exatamente. Creo que uno es una especie de médium atravesado por las revoluciones de la lenguaje”. Com rigor, a força atravessa o corpo. Somos mensajeiros das experiêmcias místicas, transtornando o inefável magicamente. Nas palavras de Néstor, o poeta mágico “hacer pasar una pedra por la garganta , una piedra brillosa o barrosa, un diamante de lodo, tal vez” (Perlongher, op. cit., p. 306).


Através da escrituração ou do rito somos mensajeros del diamante de lodo. Do diamante percebemos a fuerza branca criativa, de Oxalá, o criador do mundo, na mitologia iorubá. Do lodo de Nanã, no fundo do pântano que margeia os nossos candomblés, retira-se a matéria prima que molda os nossos – provisórios – corpos. Olorun anima o lodo, recria-, insufla seu peito com emi – o ar da vida, da respiração. O diamante de lodo passa pela garganta a cada vez que esculpimos antologicamente a força dionisíaca – eis o “delírio rigoroso”.


“una poesía contra-yo, antes del yo, que busca soltar lo que está antes: el ritual, el chamán de cada poeta; una resignificación de lo mágico. Fruición por la derrución. Palabra que interviene sobre lo real, antes de comunicarlo; delírio rigoroso” (ibid., p. 307, grifo meu).


bibliografia:

Perlongher, Néstor: Papeles insumisos. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2004.

Campos, Haroldo: Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004.