quinta-feira, 16 de julho de 2009

delírio rigoroso (parte II)



“Zumbi é o senhor da guerra, é o senhor das demandas... e quando Zumbi chega é Zumbi é quem manda” (Jorge Bem, “Zumbi”). Como sobreviveram os ritmos, a espiritualidade e os modos de subjetivação negra dos descendentes de Zumbi por entre as ruas retilíneas e diacrônicas da cultura ibérica? A força de Zumbi é a das covas, das grutas, dos subterrâneos, dos ventos, do fogo, dos mares e cascatas. “Eu quero ver, quando Zumbi chegar... o que vai acontecer”. Não só sobreviveram como se afirmaram e reaparecem nas esquinas, nas curvas das ruas, na morada de Exu; atravessando a natureza. Hoje insurgem como modo de subjetivação alternativo ao padrão identitário do homem branco ocidental.



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O canto de Exu é a comunicação, o sexo... Ele é o mensageiro – o trânsito – que atravessa os corpos. Para Néstor Perlongher está presente no desejo... na sonoridade desse encontro de vogais, na boca abrindo, a língua rossando os dentes e, depois fechando e deixando uma brecha para o som sair... Essa conexão é proporcionada pelas brisas das esquinas de Exu, onde o deseo se (re)produz. “Diría que el deseo es conexión, es aquell que hace entrar a las cosas en contacto, en movimiento: no es tanto lo que va de un sujeto a un objeto sino ‘entre’, entre dos, lo que realiza la conexión. (Perlongher, 2004, p. 330).



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“Lo que yo te puedo decir es en qué estoy preocupado ahora: ahora estoy preocupado con la cuestión de lo dionisiaco, del éxtasis. Parece muy místico, muy extraño, ¿no? […]. primero somos afectados antes de ser personas o identidades o, inclusive, discurso. Primero está lo molecular, lo microscópico, antes que esté lo estructurado, lo organizado (Néstor Perlongher)



O ar, o fogo, a mata, o mar estão impregnados; contaminam os corpos que por ali passam. Os corpos são formados, dizem os chineses, pelos movimentos dos cinco elementos – metal, água, madeira, fogo e terra. Tudo se contamina, se afeta e se forma pelas encontrovérsias – como transtornos ininterruptos – das forças e das formas. Antes de sermos identidades, somos corpos como fome, com sono, adoecendo sem causas aparentes... para os chineses, as doenças são desequilíbrios em nossos padrões de comportamento...



(Lembro do pôr do sol à beira do rio Paraná, em Rosário... um espetáculo; no horizonte a ponte que liga Rosario à Vitória)



De um afeto microscópico, molecular, informal, caótico, desorganizado – fluido de força mística – compomos um corpo molar, formal e organizado. Assim, interferimos magicamente, transtornando o místico... o barato é que o intuito da escrituração é restituir a sensação intransferível daquele pôr do sol à beira do rio Paraná, em Rosário.

Para Haroldo de Campos, o mesmo ocorre na tradução: “o que há de essencial, próprio e único de um objeto não pode ser traduzido, assim como o que há de único e que faz de alguém alguém não pode ser comunicado – e, no entanto, o que se busca traduzir, o que importa traduzir é justamente o intraduzível” (Campos, Pignatari e Campos, 2006, p. 112). O delírio da linguagem é o que permite a tradução ou a comunicação das experiências, que sempre guardam uma dimensão muda - inapreensível. E volto a lembrar que o rigor - formal? - é indispensável para que a força não se perca e a nossa intervenção mágica se realize. Dessas experiências inapreensíveis da linguagem - mudas e místicas - emerge um "plano de expressão" ou nossa intervenção mágica - esse delírio rigoroso:



“Yo pienso que en lo que hace al plano del pensamiento se trata de tratar de acabar con un tipo del pensamiento del discurso teórico cuya función sea la de sofocar – aun bajo la excusa de significar –, de sofocar lo real. Lo real en su sentido más pasional o pulsional. Entonces, hacer un plano de expresión donde, digamos, la corporalidad, el deseo, en última instancia, la locura y el delirio pueden pesar” (Perlongher, 2004, p. 361).


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“escrita en transe” – poética –

instranse – salto nos confins do mundo

na grande consciência – no fluxo...



“yo creo que en el estado de creación poética hay algo parecido a la posesión. Es una especie de no-yo, […] Como un torrente en el que se mezcla todo. Pero se mezcla todo al servicio del propio flujo. […] el efecto poético, que es difícil de definir, que tiene algo de inefable, de luminoso” (Perlongher, 2004, p. 369).



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O corpo como uma “caixa de resonância”, ou seja, “el cuerpo como cuerpo”. Nessa caixa de ressonância se escutariam todo tipo de sussurro, burburinho, ruídos, sons, cheiros, texturas, numa palavra, intensidades. Permancer e observar, escutar, sentir, cheirar, tocar tudo com todo o corpo; observar os pensamentos, esperar que se acalmem.



satori

escrituração

mensageiro dos planos de inmanencia, das viagens através das experiencias de éxtasis

espreiteza

aguardar o momento oportuno para o salto nos confins do mundo.

o delírio rigoroso como modo de operação

intervenção mágica nesse mundo inapreensível.



bibliografia:


CAMPOS, Haroldo de: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

PERLONGHER, Néstor: Papeles Insumisos. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2004.