sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

notas sobre a mulhé amante

alguém que suplementa seu pensamento
rebolando e gingando
como mulhé amante

ela tá em excesso
sempre
chora e vibra
como as ondas se movimentam no mar
(um excesso d´água)

sopra o alento que aquece o espírito
como a brisa sussurra seus segredos
o ser de outra casa do saber
o conhecimento do corpo
exalando o perfume inebriante do sexo
os fluidos e secreções que,
em êxtase,
choram lágrimas de orvalho
na ponta da flor aberta

e ela aqui, rebolando e gingando
nas dez direções,
sem tirá nem pô
desse jeitinho de mulhé
(honra de mulhé amante)

a ação sai dela (e vai pra ela)
amante
eternaliza o amô num mundo doloroso
os outros se aquietam
- vergonhosos seres gulosos -

amante
responde com o ímpeto do fruto maduro
exibe-se, rebolando e gingando,
com o corpo alaranjado
é mulhé
a mulhé amante
de garras de onça
cortante e dilacerante
das certezas do coração

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

das contaminações

(san lourenzo 46, segunda, 19 de janeiro de o9)

Entendem eles que para nos emanciparmos do jugo portu­guês devemos, o quanto antes, emanciparmos da língua lusita­na a nossa língua, e o melhor meio de o fazer será abrigarmos no idioma novo toda forma de linguagem chula, de calão, de barbarismos e de sujeira em que, desgraçadamente, sempre foi fértil o linguajar do povo. Em vez dos clássicos, dos puristas, dos Camões e caterva dos séculos passados, falem e pontifiquem os malandros, os analfabetos, os idiotas, as prostitutas e a ralé mais baixa (Campos de Carvalho).


Através das composições diárias que realizamos, em nossas encontrovérsias, devemos contaminar a “doxa”, o senso comum; enfim, a “mega-ideologia” global e dominante, de que fala o filósofo português João Barrento. Só assim o estabelecido e normal – naturalmente dado – manifesta sua instabilidade e suas anomalias. Daí a importância de informes como esse de Campos de Carvalho ou os trecos desabrigados de Antônio Fraga. Este, na década de 60, cansado de sucessivos insucessos entre a nata cultural carioca exila-se em Queimados, na Baixada Fluminense, ampla área periférica do Rio de Janeiro. Sempre ouvimos ou lemos histórias de artistas que foram obrigados ou perceberam a necessidade de se (auto)exilarem. Daí foram pra Roma, Paris, Londres, Nova Iorque, Madrid, Lisboa, Santiago, Montevidéu, Cidade do México e por aí em diante. Nunca ouvimos ou lemos sobre suas fugas pra Baixada Fluminense ou pra África.

Em tempos duros como a década de 60 no Brasil, foram muitos os que deixaram o país ou que nele permaneceram e pegaram em armas. Tenho um primo-tio que fez parte do MR-8. Num dado momento de sua vida guerrilheira casou e se mudou, como Fraga, para a Baixada Fluminense, mais precisamente para Belford Roxo. A mulher com quem casou era filha de um sindicalista importante do movimento trabalhista do Rio. Vim a descobrir, recentemente, que meu primo Marco Antônio também escrevia poemas, contos e ensaios.

Agora, por que esses dois Antônios escolheram essa zona periférica, abandonada pelo poder público e entregue a poderes locais, a dizer, grupos de extermínio? Lembro que conheci um poeta e músico fluminense, nascido e criado na Maxambomba – antigo nome de Nova Iguaçu, a terra da laranja. Seu nome era – e é, espero – Lara. Conversando com ele aprendi sobre Antônio Fraga e, por coincidência, conhecera também meu primo. Fraga e Lara mantiveram contato: ministraram cursos, editaram revistas e estimularam os jovens escritores a compor músicas, pintar e tocar um instrumento. Foi de um desses encontros que viria a surgir a banda de reggae Cidade Negra – em Mesquita havia um movimento forte de reggae. Com Marco Antônio e Márcia, sua esposa, Lara militara junto.

Pra minha surpresa, nos primórdios do novo milênio, só havia uma livraria em Nova Iguaçu, cuja população ultrapassava o milhão de habitantes. Cinemas só no shopping e, nem precisa dizer, só passavam os filmes hollywoodianos. E, ainda assim, Lara, Fraga e Marco Antônio se exilaram ali, no Rancho Fundo, bem pra lá do fim do mundo. Nossa família, minha e do Marco, é parte do Méier e a outra de Alagoas. Com a dedicação intensiva de nossos antepassados, sua família foi viver na selva de pedra, no Leblon, em frente ao suntuoso estádio do Flamengo; onde eu ia asistir os jogos do mais querido, quando ainda jogava por ali. Meus avós, depois de rodarem o Brasil, compraram um apartamento na Prudente de Morais, em Ipanema. E Marco Antônio, físio-químico, dedicou grande parte de sua vida a militância e a poesia.

Lara viveu no Bairro de Fátima e no Catumbi, como Fraga. Seu programa predileto era tomar um drinque nos puteiros da Lapa. Gostava do ambiente e, em geral, não ia a “trabalho”, ia pra papear, jogar conversa fora com as putas e as pessoas que trabalhavam no bar. Contou-me que levava suas namoradas lá. O clima era contagiante e excitava o casal. A cerveja era barata e experimentava a nata da “sujeira”, do submundo carioca. E eis o ponto: contaminava-se. Os puteiros da Lapa são os lugares da Aids, da sífilis e da gonorréia. O lugar de Madame Satã, da navalha que corta, estupra, excita. Da sensualidade em sua dimensão mais crua – imunda – suada e molhada de sangue. O lugar de bêbados e cheiradores. De assassinatos, assaltos. De adrenalina solta na veia, naufragando no sangue que esvai-se. Um lugar e um tempo de esquinas abandonadas, escuras e sujas aguardando um poema que narre o inconfessável de seu chão – seu ar.

E de lá, onde nasceu, viveu e cresceu Antônio Fraga foi para o Rancho Fundo. Não foi pra Paris, Roma ou Cintra – onde Glauber dizia: “um bom lugar pra se morrer!” – foi para Queimados, pra um dos lugares mais quentes e pobres do mundo. E, por isso mesmo, dos mais criativos. Releio um anseio críptico de Paulo Leminski que conta como o curitibano é estéril culturalmente. A cidade classe média, onde se consome arte e não se produz nada. Uma cidade puritana, da ética do trabalho, permeado pela mística do imigrante. Nas sextas e sábados, essa imensa classe média sai pra jantar e. logo depois, vai ao teatro, cinema ou concerto de música. E nada mais, volta pra casa e descansa como cidadãos bem-comportados, aguardando o raiar do dia pra trabalhar e seguir movendo a roda da vida. E assim permanecem até a velhice e a morte. Sem excessos. Retendo a vida com retidão. A cidade edificada pelo imigrante e sua mística do trabalho e da repressividade sexual.

Curitiba poupa, guarda. Consome o que tem valor de uso – o inútil não tem vez – o excesso é denunciado. O “refratário [sustenta Leminski] às delícias da ordem e da disciplina necessárias para o trabalho” – o “vagabundo” ou um Macunaíma – é pulverizado nessa sociedade utilitária. Isso tem um preço: a sensualidade ou a coerção do princípio de prazer.

A mística do trabalho é uma mística contra o prazer, contra o corpo, uma mística de tipo puritano, calvinista, que reprime o prazer para canalizar as energias todas do indivíduo para o trabalho material. Ela começa na exaltação da sublimidade do trabalho. [...]. O preço do trabalho é a nossa sensualidade. A nossa sensorialidade. A nossa capacidade de jogar e de brincar. [...] As sociedade centradas no trabalho, como a nossa, são sociedades cheias de problemas sexuais. [...]. Curitiba é a retenção das fezes. Nosso pecado é a avareza. Ora, criar é esbanjar. Só por excessos se cria. Por uma exuberância. Os indus acreditam que os deuses criam este mundo por um escesso de ser. (Leminski, 1986, p. 77-78).

Mais adiante, Leminski convida a leitora – uma “mulher bonita” – a observar o “proletariado periférico”. As cantadas e abusos – os assobios – os olhares de quem olha mesmo para as bundas e tetas estonteantes, “exteriorizando livremente sua libido, sua sexualidade, seu desejo. [...] As filhas das classes populares, se exibindo, se abrindo, literalmente, pondo para fora sua saúde de quem está a fim e comunicando que está a fim” (op. cit., p. 78). Daí a preferência de Lara pelos puteiros da Lapa ou o exílio do meu primo Marco Antônio a Belford Roxo. A Baixada deve ter a maior quantidade de bundas e rebolados por metro quadrado do mundo. O oposto de Curitiba. Na Baixada não tem livrarias, teatros, cafés, cinemas do grupo Estação. Lá não tem nada disso. Tem ginga, danças, macumba, sexo, churrasco na laje – enfim, cultura popular. E foi pra lá que os Antônios foram e onde Lara os recebeu.

O sexo é sujo, contamina o outro num “jorro iridiscente”, como gostava de dizer o poeta argentino Nestor Perlongher. É lúdico, um jogo de sensualidade, odores, cores, perversidades e prazeres. É um excesso de ser. Uma recriação do mundo. Aliás, os indus se dedicaram ao gasto inútil do sexo, através do kama sutra. Informando o mundo com posições, cheiros, brincadeiras para aumentar nosso prazer, nosso gozo. A arte do sexo. Um dispêndio de tempo, um excesso curacriativo. Parece-me que do Catumbi, passando pelos puteiros da Lapa, as favelas com o samba e o funk até a Baixada Fluminense é onde a imaturidade do jogo, da brincadeira, da vagabundagem, do desperdício, do sexo e da arte pulula e germina com mais intensidade no Rio de Janeiro. Onde a pessoa sentem-se mais livre para criar. Onde se contamina com a sujeira, o português errado e sonoro.

As macumbas são dançadas. O jogo de sedução está presente nos movimentos, no suor dos corpos, no transe da música. No riso das ciganas, das Pomba-Giras, dos malandros, dos Exus; no grito dos Caboclos, nas mãos que tocam os atabaques e provocam o transe do iyaô e faz dançarem os Orixás. Essa infância lúdica contamina e INforma a cultura do trabalho, da poupança, da contenção e da repressão, ainda que a sua revanche seja a proliferação das Igrejas evangélicas, restituindo o puritanismo, a roupa cinza e marrom, a calça e a saia longa. É a morte do rebolado, dos gestos sensuais, das cores – noutras palavras, a morte do corpo.

O escritor polonês Wiltord Gombrowicz, exilado na Argentina, durante a segunda guerra mundial, e o filósofo alemão Walter Benjamin concordariam com Paulo Leminski. Ao convidar a leitora a dar um rolé nos bairros populares de Curitiba e deixar-se levar pelas cantadas e assobios, essa manifestação libertária da libido, ele propõe uma outra ventilação em seu sistema sígnico – uma resignificação. O mesmo acontecia quando Gombrowicz elegia o bairro de Retiro, em Buenos Aires, para seus passeios noturnos: zona portuária, de prostituição e da juventude popular. Dizia que é justo lá que é mais contaminado pela dimensão INforme e imatura da cultura argentina. E esta é curacriativa. Benjamin foi a Marselha, zona de imigração argelina da França, para experimentar o haxixe. Contou que preferia passear pela periferia de Marselha para sentir esse outro espaço-tempo.

Que baixem os erês – as crianças dos cultos afro-brasileiros –, os Antônios, esses filósofos e artistas nos terreiros acadêmicos e cidades ou bairros de classe média. Em Santiago, sinto-me mais próximo de Curitiba. Batuco na mesa pra vê se esquenta os ar gélido e contido. O suor, o canto, o corpo e as cores atravessando-se em movimentos incessantes e excessivos – brincando! –. O texto escrito nesses outros espaços-tempos. Contaminados e contaminando a língua, a gramática e os signos com a ginga das culturas populares. Eis o processo de descolonização epistêmica – do conhecimento e do pensamento. Libidos e assobios para as mini saias das putas que passam diante do bar. Ruídos dos excessos corporais. Riso solto, sem razão, um riso dos confins do mundo.