segunda-feira, 25 de maio de 2009

corpo epistêmico de oxalá I


(floresta das mãos, o8/10/07)

corpo vaso

cabeça ori

harmonia sagrada

eran é carne

eje sangue líquido

de todos os seres, o mesmo..

somos sexuados

no banho, nas vestes, no fogo..

o sexo ta em tudo.

o aiyé é aiyé

ou o mundo é mundo

só quando todos os fenômenos estão harmonizados

com todo o mundo.

exu é atemporal

é vertente e poente..

e a ancestralidade é nossa continuidade

– não há morte –

somos fonte de energia sagrada

TOTEMIZADA..

tudo no mundo é vivo – e morto –

“o instante é a ancestralidade”

tudo na vida tem utilidade.

rastre(ar)

seguir as pegadas – marcas? –

d’ar

seus aromas, seus sussurros e suas cores.

perder-se

ou encontr(ar)

tornear o objeto, girá ao redor d’um centro incontornável..

entregar-se a magia do desvio – o erro.

diferenças apenas

sem valor de troca..

segunda-feira, 18 de maio de 2009

cria mundos é ser latinamericano (parte III)



[parte III]


“Dentro das massas tem o homem.

E o homem é mais difícil de domar do que as massas”.

(Paulo Martins em Terra em Transe).



Na conversa entre Foucault e Deleuze, este último reforça o que eu vinha sustentando no final da seção anterior. O papel público do intelectual resulta num questionamento de seu próprio lugar como objeto e sujeito do poder:


O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco ao lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso.” (apud Foucault, 2000, p. 70-1).



Para Rubén Rios Ávila, devem-se buscar “nuevos lenguajes de resistência, nuevas maneras de pensamiento que no dependan necesariamente de los modelos clásicos nacionalistas” (Ávila, 2005, p. 1). Não adianta insistir em ficar apontando os culpados, é claro que o imperialismo norte-americano usurpa nuestra América como sempre o fez. É mais importante, para Rios Ávila, analisar os discursos de la colonización e assim evitar o velo acusatório. O poder se dedica à exploração em diferentes instâncias e em todas estas deve ser contestado. Cada qual levanta a voz em seu próprio lugar de opressão. Assim, os “revides locais” ao poder, de que nos fala Deleuze, são afirmados e re-afirmados.

Os partidos políticos mostram uma defasagem muito grande com a realidade corrente do mundo contemporâneo. A lógica democrática na América Latina, afirma Angel Rama, está vinculada à tomada do poder. O partido político, com isso, tornou-se “o instrumento para a tomada de poder”. Rama indica três traços que definem a sua prática política: “baluarte ideológico”, “democracia organizativa” e “solidariedade nacional”. Pouco ou não mais o político, que se profissionaliza, sai de dentro dos gabinetes do poder representativo e se encontra com o poder popular. Arnaldo Antunes ironiza:


[...] desce do trono rainha / desce do seu pedestal / de que te vale a riqueza sozinha / enquanto é carnaval [...]. Desce das suas alturas / desce da nuvem, meu bem / por que não deixa de tanta frescura / e vem para a rua também? (Desce – versão 2, música de Arnaldo Antunes)


Construções às margens da sociedade são escassas, mas é onde o papel público dos intelectuais pode se encontrar nos desencontros de realidades. É justamente o lugar privilegiado onde Antônio das Mortes e Paulo Martins se confundem e onde duelam. Criando mundos, ekedi Cléa, minha co-orientadora, e eu seguimos planejando as filmagens de nosso deslocamento para outros planos e a elaboração de um plano-sequência. É lá onde nos encontramos na rua, durante o carnaval que pinta as ruas. Isso me leva ao encontro com Euluilyos e seu primeiro deslocamento-viagem.


A criação e reflexão intelectual sobre a América Latina cada vez mais tende a ocorrer nos EUA.

Nosotros no podemos permitir, de ninguna manera, que el foco de la investigación y de la creación latinoamericana ocurra en Estados Unidos como su centro, y que Latinoamérica se convierta en la periferia intelectual de su propria latinoamericanidad. (Ávila, 2005, p. 4).



Miami, como avalia Ríos Ávila, está se tornando uma capital latinoamericana e, dessa forma, o culturalismo latinoamericanista está entrando em erosão e colapso. O autor foi entrevistado e comenta o seu prêmio concedido pela Casa de las Américas. Ele indica a importância desse espaço como lugar emblemático para o continente, lugar único “desde donde latinoamerica se pronuncia como una y varia simultaneamente, y desde donde habla”. Por isso mesmo devemos todos: “defender ese espacio con uñas y dentes” (Idem).

Com coragem, vou-me iniciando nesse novo e móvel lugar do “não-intelectual” latinoamericano. Vou construindo realidades a partir da perfuração e do deslocamento dos terrenos trêmulos que despontam no horizonte aberto à nossa frente. A questão não é se o Brasil fala outra língua e possui um amálgama de aspectos culturais que o diferencia do restante do continente ou todas as divergências entre um país indígena como o Peru e um país negro como é o caso do Haiti. Até porque os modelos explicativos clássicos sobre a concepção de nação estão se mostrando insuficientes. O que me interessa é que a “cultura ocidental e canônica” não dá conta de nossa realidade. Escancarada e misteriosa, esta só pode ser entendida nos encontros advindos dos desencontros, na canção que cantamos a partir de nossas diferenças rítmicas. Podemos dançar salsa, samba, tango ou manguebeat. Para todos esses ritmos, a rua é o palco horizontal e iluminado que faz brotar a mística das revoluções criadoras.

Cria mundos é ser latinoamericano.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

cria mundos é ser latinamericano (parte II)


Des-Cobrir A Terra, Revolver as Manifestações Culturais


II


[…] as forças mais profundas do nosso inconsciente não devem se abater diante das repressões. Devemos nos transformar a cada minuto enriquecendo os toques iluminados de nossa consciência sempre alimentados pela seiva do sonho que ultrapassa as paredes de nossa casa e beija as faces esquecidas do povo. Últimas palavras do meu exilado ser pequeno-burguês aos companheiros. [...]. adeus por muito tempo. Acho que só em dezembro posso lhe escrever. pois quero agora entrar numa longa solidão em busca do meu sertão.

(Rocha, 1997, p. 416-7).


O Brasil e a América Latina, como subdesenvolvidos, partem de uma força negativa que “dilacera as possibilidades e paralisa a criatividade” (Avellar, 1995, p. 9]. O continente está marcado pelo misticismo da espiritualidade afro-índia e pelo ímpeto revolucionário presente nos caudilhos espanhóis e nas revoluções que se espalharam por todas as partes do continente no decorrer de nossa história. Insurreições contra a escravidão, como foi o caso do Quilombo de Palmares, no Brasil; resistência índia, como foi o caso do chefe indígena Willka, na Bolívia; o sonho bolivariano e martiano de união da América Hispânica e todas as lutas de independência que se alastraram pela América Latina no século XIX; as guerrilhas, que sonharam com a justiça social e com uma revolução continental e que encontraram seu apogeu no triunfo da Revolução Cubana de 1959.


O “misticismo revolucionário” é a nossa história. É forma de resistência inerente à espiritualidade que insiste em re-afirmar-se. No Brasil, o sebastianismo, que Euclides da Cunha viu em Antônio Conselheiro, e a força dos candomblés, que Buru enfatiza em seus filmes, contribuem para o estiramento do real, que deixa de ser explicado somente pela racionalidade européia. No restante da América Latina, Mariátegui afirma a dimensão do índio socialista, que precisa lutar por sua terra, para, a partir de sua reconquista, reafirmar-se culturalmente. Martí profetiza o advento do imperialismo norte-americano – “vivi no monstro, e lhe conheço as entranhas” – e se entrega aos “afetos” da revolução com sua força transformadora: “existem afetos de tão delicada honestidade” (Martí, 1991, p. 254). Para Glauber, ele é “exemplo do não-intelectual, do intelectual a serviço do povo [...]. o melhor exemplo do que seria o intelectual latinoamericano” (Rocha, 2002, p. 49).


Do meio para o final do século XIX, diversas insurreições eclodiram no México, inúmeras rebeliões indígenas apareceram em todo o continente. Pablo Gonzalez Casanova dá alguns exemplos entre os quais o “plano de Sierra Gorda”, de 1879, no México, rebelião de camponeses que reivindicavam a reforma agrária e a conversão dos trabalhadores rurais em pequenos proprietários, além da criação de propriedades comunais. Com relação às lutas raciais, Casanova menciona o exemplo da Bolívia e do chefe indígena Willka, que lutou na década de 1890, implementando um combate feroz contra o colonialismo branco e perseguiu a todos os brancos e mestiços, sem distinções. Seu alvo eram todos aqueles que usavam “calças”, símbolo do colonialismo na Bolívia (Cf. Casanova, 1987).


Essa realidade latinoamericana permeou os filmes glauberianos. Um exemplo disso é o roteiro de América Nuestra, que, para Avellar, era irrealizável. Muitos de seus filmes recolheram fatos, personagens e idéias que já estavam contidos nesse roteiro, que também foi sendo modificado no decorrer dos anos. Comparando América Nuestra com Terra em Transe, Avellar destaca a semelhança entre os dois protagonistas: Juan Morales, do primeiro, um poeta dividido entre o jornalismo e a política, e Paulo Martins, do segundo, um poeta em conflito com a poesia e a luta armada. Ainda segundo o crítico de cinema, ambos são a continuação da estória de Manuel e Rosa, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, que no final aparecem correndo para o “mar libertador”. É como se aquele ambiente rural de violência e messianismo, de cangaceiros e dos fiéis de Sebastião se deslocasse para a cidade. Daí, o conflito se ampliaria no espaço urbano, onde a figura do intelectual vanguardista é central para Buru, que assume seu lugar ao mesmo tempo que o problematiza (Cf. Avellar, 1995).


América Nuestra serviu, no entendimento de Avellar, como “teoria” para filmes como Cabezas Cortadas, Der Leone have sept cabeças, Terra em Transe – conforme vimos acima ­, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Enfim, Glauburu mantém o intuito de alcançar uma linguagem latinoamericana e revolucionária que fale de nossa realidade, que alerte para a condição de pobreza e fome. Uma linguagem nova, portanto, que desloque o real, centrado no racionalismo colonizador. Operando através de torções, possibilitadas pela dimensão do “sonho” e do misticismo, para que ampliem nossos horizontes. Isso porque, só aqui, em terras, ares e mares tropicais, houve culturas soterradas pelo poder colonialista e neo-colonialista. Deixemos que elas irrompam do solo e criem ondas gigantes nos mares do Atlântico e do Pacífico, pelos rios que inundam a terra fértil, e olhemos para os céus para conferir o que se passa acima de nossas cabeças.


De um lado, podemos colocar os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, que partem de uma realidade especificamente brasileira, ou melhor, nordestina. De outro lado, temos os filmes Cabezas Cortadas e Terra em Transe que se utilizam de referências hispano-americanas e espanholas. Há ainda um terceiro lugar em que poderíamos encontrar a referência à África, é o caso do filme Der leone have sept cabeças.


O intelectual é problematizado. Glauburu se constrói ao longo da produção de sua obra, coloca em questão o lugar que deve ocupar. Transforma-se em Manoel, camponês do sertão, que vai de fanático a cangaceiro em Deus e o Diabo e “afronta não apenas o misticismo como violência, mas a violência como misticismo, ou seja, o discurso sobre o cangaço” (Valentinetti, 2002, p. 58). Das filmagens de Deus e o Diabo até O Dragão da Maldade, Glauber vai aprofundar seu personagem Antônio das Mortes. No primeiro filme, ele é o jagunço, “matador de cangaceiros”, no outro, ele, após ferir o cangaceiro Coirana, conversa com a Santa que o manda partir, para pagar pelas mortes que causou. Em conflito existencial, reavalia o lugar que ocupa dentro da luta de classes do sertão. Cabe uma explicação mais minuciosa deste personagem:


Antônio é a imagem visual de uma consciência ambígua, em ‘transe’, que por meio de suas contradições desenvolve-se sempre mais. É camponês, não um burguês e, portanto, pode transformar-se mais facilmente e mais rapidamente em um revolucionário. Logo, Antônio age aqui como uma verdadeira e justa força libertadora, ainda que esteja a serviço do poder (Valentinetti, 2002, p. 62).


Esse aspecto é fundamental para pensar o papel público do intelectual latinoamericano. O ímpeto revolucionário é alargado para além dos limites da racionalidade européia. Diz Buru:


Abandonando [o intelectual] essa posição de elite, identificado socialmente com as outras classes de homens que trabalham dentro da sociedade, ele penetra mais nesses problemas e produz uma arte que, por exemplo, não fala mais sobre o povo, mas que seja a voz do povo. Aí então a arte é revolucionária, a ciência social é revolucionária. Então, nessa medida o intelectual desaparece, desaparece inclusive essa expressão ‘intelectual’, porque é uma expressão inclusive feia hoje, dá a idéia de alguém que é vítima do racionalismo (Rocha, 2002, p. 47).


Este trecho de Glauber indica uma mudança no que antes era percebido, mesmo que em parte, como alienação. A cultura popular – em especial a espiritualidade, como o candomblé, em Barravento e o fanatismo, em Deus e o Diabo – passa, agora, a “realidade popular” carregada de força transformadora. Antônio das Mortes corporifica essa mudança do pensamento glauberiano. De jagunço a cangaceiro, através de sua crise existencial, intelectual-camponês que é. Problematiza o conflito entre o poder e os oprimidos, a partir de seu próprio lugar de ação, que está entre os dois. O filme traz diálogos por vezes cantados como a literatura de cordel e o repente. O próprio título do filme recupera a lenda do guerreiro São Jorge contra o Dragão da Maldade.


Na entrevista, já citada, concedida aos cineastas do ICAIC durante o período em que morou em Cuba, Buru fala sobre a utilização de uma linguagem que corresponda a uma produção de realidade latinoamericana. Ao fazê-lo, ele remonta às trajetórias, dentre outras, de Martí e Mariátegui:


[...] faço filmes ficcionais ligados à realidade latinoamericana. Daí surge uma linguagem que expressa os mitos mais profundos do povo latinoamericano, herdados da cultura negra, da cultura índia, das imagens, da imaginação visual, da arquitetura, dos trajes, da escultura popular, da moral do povo, que não é moral burguesa, da psicologia do povo, que não é psicologia burguesa [...] (Rocha, 2002, p. 83).


Do sertão, propriamente dito, Glauburu partiu para um filme que se passava em um país – Eldorado – que poderia ser qualquer um da América Latina. Outro deslocamento do cineasta foi a viagem do campo para a cidade. Em Terra em Transe, o protagonista, Paulo Martins, se contorce diante de uma câmera que gira e tira o referencial do espectador. É um filme que tem como personagens, além do poeta-jornalista, Paulo Martins, duas outras figuras típicas, Dom Porfírio Diaz e Dom Felipe Vieira. Como Porfírio Diaz, Paulo Autran, encarna os líderes conservadores, autoritários e católicos de nuestra América, ao passo que José Lewgoy, interpretando Vieira, é um líder populista que, como tantos que por aqui governaram, permanece afastado do povo.


Em Cabezas Cortadas, Buru filma um castelo que pode estar em qualquer país da América Hispânica ou na própria Espanha. Dos filmes de Glauber, que tematizam o nosso continente, este é o menos brasileiro de todos. Está entre a Espanha e suas ex-colônias. “Cabezas Cortadas é um filme espanhol [...]. O aspecto figurativo do filme é diretamente inspirado na tradição popular” (Rocha, C). A Espanha, para o cineasta, é culturalmente muito parecida com a América Latina. As referências do filme vêm da literatura de Miguel Angel Astúrias e Valle-Inclán. É um filme irônico, de estrutura complexa e arrojada.


Cabezas Cortada é um filme que, embora referindo-se às obras precedentes, constitui, ao mesmo tempo, o complemento ideal e a superação no sentido de um caminho terceiro-mundista [...]. sua característica principal reside exatamente em uma nova pesquisa estilística [entendida em sentido lato, compreendendo, assim, todos os aspectos da elaboração cultural e política], dominada pela alternância do vivido e do fantástico, do real e do imaginário (Valentinetti, 2002, p. 131).


Sobre o título, diz Glauber: “Um povo sem cabeça é um povo mudo, oprimido” (Rocha, C). Valentinetti organiza o filme em dois blocos representados pelas lembranças de Diaz II: “as lembranças dos faustos passados e do antigo poder e a premonição do seu próximo fim mortal, expressados por meio de dois trechos reais do filme, os dois telefonemas”. O filme começa com Diaz II falando em dois telefones e dentro do castelo. Os diálogos intercalados se cruzam e se confundem e se dão ora entre o líder e Fredy, ora entre ele e Alba. Almejando definir o filme, Buru sustenta que é, acima de tudo, um filme do Terceiro Mundo:


É um filme que nasce da cultura do 3º Mundo não precisamente da cultura da fome mas de um dos aspectos mais misteriosos da cultura iberoamericana, que é a loucura que traça a origem da frustração. A loucura latinoamericana mais notável é a loucura tropicalista de Garcia Márquez e Macunaíma, aquela de Santo Inácio de Loiola. Resumindo: Cabezas Cortadas é um filme que se inspira também na loucura católica embora não seja um filme religioso (p. 2).


Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, há um perigo na construção, feita por Glauber, do sertão brasileiro – que aparece, em especial no Dragão da Maldade – como realidade do 3º Mundo. O crítico se contrapõe à “invenção do nordeste”, do nordestino enquanto o oposto do homem urbano e cosmopolita de Rio e São Paulo. Conforme avalia, o Cinema Novo reforça essa visão, trata-se de:


Um cinema feito por intelectuais de classe média que teriam adotado a perspectiva de classe do operariado, que se colocavam ao lado das forças ‘progressistas’ contras as ‘reacionárias’, que buscavam resgatar o potencial de rebeldia da cultura popular. Paternalisticamente, propõem-se a fazer uma cultura para e pelo povo, constituir uma vanguarda na luta contra o latifúndio e o imperialismo. (Albuquerque Jr., 1999, p. 273)


Sua principal crítica é, portanto, a uma construção da intelectualidade, das classes médias que pouco ou nada sabiam da região e que continuavam reproduzindo preconceitos contra a região. Tratavam o Nordeste como local das “forças primitivas da Nação”, da “rebeldia quase instintiva do povo” e da “passividade quase animalesca”, enfim, lugar onde os mitos do “cangaço” e do “messianismo” encontravam terreno fértil.


Essa prevenção do crítico é de extrema importância para que se evitem as versões estereotipadas e não se reproduza o exotismo da cultura popular, que tanto Buru quanto García Márquez denunciaram na Europa. Acredito que o cineasta partilhava essa preocupação, que foi tematizada nos conflitos dos personagens de seus filmes. Não há síntese harmonizadora em decorrência desse embate, o que é possível são encontros-desencontrados entre realidades distintas. É Paulo Martins que ora é capaz de menosprezar o povo, que se lança aos seus pés, a repetir: “O povo é fraco... o povo é covarde”, e ora se coloca ao lado desse povo a fim de trocar e encontrar experiências. Antônio das Mortes, intelectual-camponês, questiona-se sobre o lado em que se deve colocar: o dos poderosos ou o dos oprimidos.


Dessa forma, o real apresentado por Buru é mais complexo e repleto de batalhas diárias do que nos mostra o suposto e refutado por Albuquerque Jr.. Para Antônio das Mortes, o caminho se transforma em decorrência de seu misticismo, confirmado na busca e aceitação da influência da Santa, que aparece com trajes lembrando os dos Orixás. É a forma que Glauburu encontra para refletir acerca do lugar do intelectual. Pensa a partir da cultura latinoamericana e se volta para dentro de nuestra América; assim, desencadeia focos de resistência ao poder. Hoje em dia, o papel público do intelectual no continente mostra-se cada vez mais provisório e parece exigir mutações e deslocamentos.