segunda-feira, 17 de novembro de 2008

viajar com-viver

Alexander Supertramp abandonou o american way of life e botou o pé na estrada, deixando para trás, todos os resquícios de sua vida capitalista e burguesa. Doou o dinheiro que seus pais lhe deram para pagar a faculdade, queimou os últimos dólares que carregava. Peregrinou, errante, e buscou os meios para ir ao Alaska, onde viveria solitariamente e longe das leis moralistas da sociedade que vivia. Em seus últimos dias, viveu num caminhão, que encontrou no meio das montanhas geladas desse anexo dos Estados Unidos. Depois de ingerir, por engano, uma raiz venenosa, morreu, lentamente, por inanição. Escreveu, já sem forças e com os seus últimos suspiros, nos cantos de um livro: “a felicidade só é felicidade quando compartilhada”. Essa frase foi escrita entre um parágrafo e outro de um livro que trazia consigo. Suas forças esvaiam-se dia após dia, morreu por inanição, porque não conseguia comer, o estômago rejeitava tudo e, desse modo, foi enfraquecendo até a morte.


Daí emergem várias questões. Fico pensando se a cultura ocidental pensa assim quando privilegia a genialidade individual. Não seriam os rastros de uma cultura do herói, a dizer, de uma cultura messiânica? Estamos imersos – eis o triunfo do liberalismo – numa sociedade do indivíduo, onde a harmonia coletiva é relegada a segundo plano.


Assisti a uma palestra de Agnés Agboton, no seminário “De Pedra e de Palavra: vozes de Pafrica e Ásia”, em Santiago de Compostela e organizado pelo Centro PEN da Galiza. Agboton é do Benin, mas vive na Espanha há muitos anos. Segundo a escritora, na cultura do Benin e de vários outros países – ou etnias, pois num mesmo país, encontramos mais de uma – africanos valoriza-se a harmonia coletiva. A idéia de indivíduo não é central para eles. Ouso dizer que, na engrenagem cotidiana dessas sociedade, nem sequer existe um lugar para esse indivíduo genial e egóico. Somos bilhões de seres humanos lutando uns contra os outros para sermos o herói do filme. Identificamo-nos com a protagonista. Agnés Agboton disse: “a pessoa é muito importante para a outra”. O que está em questão é o modo de convivencia. E arrematou: “indivíduo, só o bruxo”.


Eu já havia escutado de um babalaô – sacerdote ou “bruxo” ioruba que consulta o oráculo de Ifá – que isso também acontecia entre os iorubas, situados hoje na Nigéria e numa pequena parte do Benin. Esse babalaô me contou: quando um sacerdote de Ifá consulta o oráculo, um odu desce a terra. Este é um símbolo que narra uma série de mitos e ebós para abrir os caminhos e livrar o consulente dos aspectos negativos. Dentre os iorubas, o que importa é recitar as palavras mágicas e realizar o ebó. Desse modo, a harmonia coletiva é mantida. Os dramas psicológicos do consulente não são levados em consideração. Quando o oráculo ioruba atravessou o Atlântico, em diáspora, devorou as culturas indígenas e européias. Logo transtornou-se numa consulta psicologizante. Em alguns casos, substitui a psicologia ou a psicanálise, uma vez que para as classes menos favorecidas torna-se inviável manter um processo de análise. A psicanálise popular são os búzios das mães de santo!


A nossa cultura valoriza o indivíduo e sua mixórdia de eventos e problemas ordinários. Esses indivíduos todos anseiam por soluções aos seus problemas. Querem harmonizar as suas vidas pessoais, a saúde da família, o marido ou esposa que não chega, o trabalho que não têm, as contas que não consegue pagar e etcétera. “A vida... a vida é etcétara!”, diria Riobaldo.


A antropofagia ioruba na diáspora é fascinante e riquíssima. A psicanálise popular, tropical e embruxada é revolucionária. Lembro, todavia, a harmonia coletiva, de que falava Agnés Agboton. Esse é um gesto necessário para os dias de hoje. A felicidade compartilhada no espaço entre um parágrafo e outro. Essa felicidade decorrente da harmonia coletiva, nem que rasuremos o livro, acrescentando uma frase que escapou ao autor. Uma harmonia coletiva onde nossas perspectivas individuais sejam postos de lado e, assim, possamos experimentar uma outra sensibilidade, um outro modo de convivência, outras saídas e entradas em nosso mundo contemporâneo.

2 comentários:

Edu disse...

Excelente texto!!!
Cara, gostei muito!
Bela reflexão!

Tô com saudades de bater um papo contigo, nada de skype.

Em breve, conversaremos pessoalmente, olho no olho, compartilhando nossa felicidade.
Bjs.eduda

Viviane Vasconcelos disse...

Pensei um pouco sobre isso nos últimos dias. Que teia de vivências! Ah, diria Riobaldo ainda: "Posso me esconder de mim?" (...) "Viver é um descuido prosseguido". Beijo, Vivi.