segunda-feira, 22 de junho de 2009

escrita alegórica ou escrita em transe


Depois de uma conversa com a ilha do mar sem fim, Marília Rothier Cardoso, li mais uma entrevista do Eduardo Viveiros de Castro (da série Encontros, da editora Azougue). Fiquei com uma "fuga atrás d'orelha" (Artur Omar). Marília trabalha com a noção de "escrita alegórica": uma literatura que constrói o conhecimento através da alegoria - emblemas -, isto é, uma (des)construção da linguagem que tensiona os signos, devorando-os e juntando distintos fragmentos de lugares de enunciação variados. Esta linguagem alegórica aglutina - violenta - o pensamento abstrato-conceitual e o pensamento concreto-sensorial (Levi-Strauss: Pensamento Selvagem). O texto fragmentado e ensaístico-literário são os espaços privilegiados pra essa escrita. Tal qual a opção benjaminiana, em Haxixe, pela escrita autoral e ficcional - a única possível. Um outro exemplo, seria a escrita caótica e extasiante de Glauber Rocha, em especial nos nas versões arquivadas de seus textos, onde as marcas do autor, de suas leituras, de suas rasuras e desvios violentam a página escrita. Um hipertexto glauberiano?

O que fica registrado, tanto em Benjamin quanto em Glauber Rocha é a "sobrevida da escrita" (o conceito é de Benjamin): uma profusão de (re)textos traduzidos e criticados. São experiências anotadas em transe, auxiliadas pela droga, no caso do primeiro e leituras, observações e resignificações do texto escrito, no segundo caso. De uma forma ou de outra, há uma manipulação - apropriação - mágica da realidade (por magia entendo uma transformção espaço-temporal). Ambos estão transtornando as formas (pré)estabelecidas dos espaço-tempo ao lançar-nos num "espaço e tempo desmedidos", como enuncia o filósofo alemão. Benjamin devém etíope e não controla seu corpo que dança seguindo o ritmo do jazz de Marselha. Glauber, escrevendo nu, nos lança numa profusão de idéias, palavras dançando e nos remetendo a uma teia rizomática de conceitos e pensamentos dispersos. Isto me faz pensar que há um outro corpo que enuncia esse pensamento alegórico - não ocidental. O corpo negro-jazz de Benjamin e o corpo caboclo-nu de Glauber Rocha.

Ambos estão escrevendo com outros - vozes-corpos coletivas - são vários que escrevivem na cadência do texto assinado por eles. Assina-se por prática formal - sobrevivência - porém escreve-se com outros, o corpo que bate à máquina ou anota é já-outro. É o etíope Benjamin e o caboclo Glauber. Escrevivem em transe, isto é, devindo outro, sem que a metamorfose se complete, afinal de contas, é preciso assinar o texto, há encargos e uma vida a sustentar - uma sobrevivida ou sobrevivência da escrita? Ser-outro através da experiência da escrita, assim como Bernardo Carvalho conjura o espectro de seu avô Rondon ao ficcionalizar a experiência do antropólogo que se suicidou no meio dos índios no início do século (em Nove Noites). Um delírio - rigoroso - da linguagem para ver emergir outros lugares d'enuciação. Um transe que abre o corpo para os caboclos - os donos da terra brasileira - permitindo linhas de fuga da captura corporal do Estado com seus rigores coercitivos. Escrever com os caboclos ou melhor ser um caboclo em transe no terreiro da página ou tela do computador.

Daê coexistirem os pensamentos, os informes coletivos e criar uma Zona Autônoma Temporária (TAZ), como quer Hakim Bey. Benjamin etíope e jazz man antropofagiou a periferia ritmica d'Europa e, ao menos no texto abriu "um tempo espaço desmedido", um TAZ. Glauburu (como assinava seus textos), entrou ou foi deslocado no corpo do caboclo Buru, abrindo pros gestos e pra nudez
: "O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará." (in.: Manifesto Antropófago). Um TAZ nu, escancarando o corpo, permeando - contaminando - os mundos, sem definições (pré)estabelecidas.

Creio ser este o movimento alegórico ou em transe. O êxtase da forma, o delírio rigoroso da autoridade que já num cabe mais, que é já-outro. Os fragmentos avolumam-se nos pensamentos sem fronteiras. Não há cercas na imaginação, essa Zona Autônoma Temporária, até que alguém ou uma corporação patentie um conceito, um modo de operação conceitual. Para a descolonialidade do pensamento é preciso abrir a roda, tocá e saudá os caboclos Burus e Benjamins Jazz-Marselhas. Deixá-los s'enunciá, cantá, batucá e dança sua música de chegada. Desfilá seu tum-tum, sua cosmologia d'outros logos e d'outras Aruandas.. Com-torcê corpos e tecidos esfarrapados, puidos, puxá-los.. É já-outro texto esse que s'enuncia nessas linhas.. já devindo conversas e batuques de samba de côco, de boi yayá, de laroiês, de juremas, de nanã-giês..

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