quarta-feira, 24 de junho de 2009

sentir o ritmo da brisa, violá-la

ao Mario, pelas helicoidais palavras


Seres imagináveis do instante já-é, a 4ª. dimensão ou o cenátimo. A serpente devora a própria cauda – a voz saúda lê-lê malê Oxumarê. A voz... ah... a África de vozes, movimentos, ritmos, ruídos e vozes. A voz de Hapatê Bâ – já escrita – perpetua o movimento e do duelo com a linguagem desponta uma fagulha... clarão... um ritmo, uma cadência, uma respiração.


Li um artigo do professor de literatura da USP, José Castello, “Borges entre os volúveis”, no Prosa & Verso, suplemento cultural do Jornal O Globo. Da leitura ficam figuras míticas. Proteu, deus egípcio da diferença, “o já diferente”, o já outro. Banshee, da mitologia celta vive oculto nas montanhas escocesas, é antes um gemido que uma forma. E esse gemido é o dos estertores.


Fui arrancado ou chutado da cama nesta manhã. Aturdido, demorei em recobrar os sentidos. Olhei no espelho. O objeto refletido – inexoravelmente refletido – pinta nossos traços e contornos com pincéis ora impressionistas, ora surrealistas ou, expressionistas. Guarda um rosto. Um rosto já outro, não nosso. Quando nos colocamos defronte, com pinceladas irônicas, nos rasura. Esse rosto já outro – o reflexo errático. O espelho de Proteu é ardiloso. Emite um gemido, o som do estertor de Banshee. Não há garantias, só informes e deformações. Nessa manhã, insisti em encarar minha silueta no espelho, queria assegurar-me de que estava ali, torto, mas ali. Sim, meu rosto estava ali, mesmo que fosse um já outro rosto.


Retorno a Hampatê Bâ, escritor das savanas e desertos de África. O rosto já outro de Proteu não fala, não sussurra algo inteligível, ele apenas geme. Reflete a imprecisão estranha. Na agrafia africana esses gemidos de Banshee anunciam a vida também. Interrompe – viola – o silêncio com seus ruídos mágicos: a palavra tem axé. O corpo do conhecimento geme e dança em acrobáticos rodopios. “A tradição oral é a grande escola da vida” (Hampatê Bâ, 2008, p. 183).


A fala africana tem um dom: germina vida. A fala é força, agride o inefável ao duelar com ele. Do embate insurge a centelha criativa – o ato de nomear! – Os olhos, o nariz e os ouvidos falam, a boca escuta e a mão fareja. Maa é homem na tradição bambara. Maa Ngala é o sopro supremo. Maa está nas duas palavras, pois os homens herdaram, do deus supremo, o poder da criação. Maa cria o mundo através da palavra falada, cantada, dançada e ritualizada. Foi Ngala, todavia, que ensinou-nos a sinestesia: ver com os ouvidos e escutar com os olhos. Foi Maa Ngala que soprou nosso corpo já outro.


A magia lança interrupções, intervenções no espaço-tempo. Assombrou e assombra as mentes habituadas às explicações. No mundo africano, no entanto, a magia é vivida habitualmente. A fala é o “agente ativo da magia”. A palavra conserva e destrói, ininterruptamente, sem sintetizar ou reduzir à unidade. A palavra é conservação e destruição. Um gemido de Banshee e um sopro de Maa Ngala. A palavra já é outra.


Já sou outro no espelho de Proteu e Banshee. Ele não fala, porém geme. Aquele outro rosto tem o dom divino da criação? De quem é esse rosto de outrem? É o mesmo que perguntar: de quem é o rosto para quem escrevo? Quem é outrem que lê? Ou quem é outrem da escrituração? Mexo, por certo, os músculos da mão, do corpo em posição desconfortável – inerte? Como seria uma ioga da escrita? – Mas, quem habita o corpo da escrituração? Vozes-corpos? Sons conformados numa língua – palavras e frases – insurgindo no corpo do conhecimento até que ele, enfim, escreve?


Nos rastros das outras culturas que escapam ao ocidente da colonialidade / modernidade se dá o embate antropofágico. Violência e violação de cosmologias múltiplas. Como única saída o corpo do conhecimento da descolonialidade escrevive. O corpo in(ex)surge na escrituração. Rasura o mundo pra ser rasurado. Gera perspectivas. Ações pelas quais “o ser humano se apodera violentamente de um certo número de coisas, reage a um certo número de situações, lhes impõe relações de força” (Foucault, 1979, p. 19). Rasura Maa Ngala, o sopro da criação bambara. Transgride a mudez, aquela que convive com o sujeito da linguagem e do conhecimento. Intante já outro – Proteu. A escrita assassina. A palavra já outra, pelo menos por hora, fixou-se na escrita. Agora, cabe ao texto permitir a leitura, nos garante Barthes. A leitura – ou a rasura da rasura – agüenta o já outro rosto de Proteu ou o gemido de Banshee. O ruído de Banshee desvia o rosto de outrem de outro espelho e transtorna-se em já outro Proteu. E Maa Ngala sopra n’ouvido do escritor.


Referências Bibliográficas:

Hampatê Ba, Amadou: Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena, 2008.

Foucault, Michel: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Ed. , 1979.


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