segunda-feira, 18 de maio de 2009

cria mundos é ser latinamericano (parte III)



[parte III]


“Dentro das massas tem o homem.

E o homem é mais difícil de domar do que as massas”.

(Paulo Martins em Terra em Transe).



Na conversa entre Foucault e Deleuze, este último reforça o que eu vinha sustentando no final da seção anterior. O papel público do intelectual resulta num questionamento de seu próprio lugar como objeto e sujeito do poder:


O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco ao lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso.” (apud Foucault, 2000, p. 70-1).



Para Rubén Rios Ávila, devem-se buscar “nuevos lenguajes de resistência, nuevas maneras de pensamiento que no dependan necesariamente de los modelos clásicos nacionalistas” (Ávila, 2005, p. 1). Não adianta insistir em ficar apontando os culpados, é claro que o imperialismo norte-americano usurpa nuestra América como sempre o fez. É mais importante, para Rios Ávila, analisar os discursos de la colonización e assim evitar o velo acusatório. O poder se dedica à exploração em diferentes instâncias e em todas estas deve ser contestado. Cada qual levanta a voz em seu próprio lugar de opressão. Assim, os “revides locais” ao poder, de que nos fala Deleuze, são afirmados e re-afirmados.

Os partidos políticos mostram uma defasagem muito grande com a realidade corrente do mundo contemporâneo. A lógica democrática na América Latina, afirma Angel Rama, está vinculada à tomada do poder. O partido político, com isso, tornou-se “o instrumento para a tomada de poder”. Rama indica três traços que definem a sua prática política: “baluarte ideológico”, “democracia organizativa” e “solidariedade nacional”. Pouco ou não mais o político, que se profissionaliza, sai de dentro dos gabinetes do poder representativo e se encontra com o poder popular. Arnaldo Antunes ironiza:


[...] desce do trono rainha / desce do seu pedestal / de que te vale a riqueza sozinha / enquanto é carnaval [...]. Desce das suas alturas / desce da nuvem, meu bem / por que não deixa de tanta frescura / e vem para a rua também? (Desce – versão 2, música de Arnaldo Antunes)


Construções às margens da sociedade são escassas, mas é onde o papel público dos intelectuais pode se encontrar nos desencontros de realidades. É justamente o lugar privilegiado onde Antônio das Mortes e Paulo Martins se confundem e onde duelam. Criando mundos, ekedi Cléa, minha co-orientadora, e eu seguimos planejando as filmagens de nosso deslocamento para outros planos e a elaboração de um plano-sequência. É lá onde nos encontramos na rua, durante o carnaval que pinta as ruas. Isso me leva ao encontro com Euluilyos e seu primeiro deslocamento-viagem.


A criação e reflexão intelectual sobre a América Latina cada vez mais tende a ocorrer nos EUA.

Nosotros no podemos permitir, de ninguna manera, que el foco de la investigación y de la creación latinoamericana ocurra en Estados Unidos como su centro, y que Latinoamérica se convierta en la periferia intelectual de su propria latinoamericanidad. (Ávila, 2005, p. 4).



Miami, como avalia Ríos Ávila, está se tornando uma capital latinoamericana e, dessa forma, o culturalismo latinoamericanista está entrando em erosão e colapso. O autor foi entrevistado e comenta o seu prêmio concedido pela Casa de las Américas. Ele indica a importância desse espaço como lugar emblemático para o continente, lugar único “desde donde latinoamerica se pronuncia como una y varia simultaneamente, y desde donde habla”. Por isso mesmo devemos todos: “defender ese espacio con uñas y dentes” (Idem).

Com coragem, vou-me iniciando nesse novo e móvel lugar do “não-intelectual” latinoamericano. Vou construindo realidades a partir da perfuração e do deslocamento dos terrenos trêmulos que despontam no horizonte aberto à nossa frente. A questão não é se o Brasil fala outra língua e possui um amálgama de aspectos culturais que o diferencia do restante do continente ou todas as divergências entre um país indígena como o Peru e um país negro como é o caso do Haiti. Até porque os modelos explicativos clássicos sobre a concepção de nação estão se mostrando insuficientes. O que me interessa é que a “cultura ocidental e canônica” não dá conta de nossa realidade. Escancarada e misteriosa, esta só pode ser entendida nos encontros advindos dos desencontros, na canção que cantamos a partir de nossas diferenças rítmicas. Podemos dançar salsa, samba, tango ou manguebeat. Para todos esses ritmos, a rua é o palco horizontal e iluminado que faz brotar a mística das revoluções criadoras.

Cria mundos é ser latinoamericano.

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