terça-feira, 12 de maio de 2009

cria mundos é ser latinamericano (parte I)




Des-Cobrir A Terra, Revolver as Manifestações Culturais

I

“Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino”.

(Rocha, 1981, p. 30).

“La interpretación de nuestra realidad con esquemas ajenos sólo contribuye a hacernos cada vez más desconocidos, cada vez menos libres, cada vez más solitarios”.

(Márquez, 1982, p.2)


Como olhar para a América Latina? Na televisão passa, ao vivo, o Live 8, o maior evento musical de todos os tempos. Realizado simultaneamente em 9 países. O objetivo é chamar a atenção do mundo para a pobreza e para a fome na África. Não é um evento para arrecadar dinheiro, é apenas para fazer uma pressão na reunião próxima do G8, que será realizada na Escócia, no mês seguinte.


A Europa e o Estados Unidos se debruçam sobre o muro, que eles mesmos levantaram, feito de ouro e pedras preciosas espoliados da América Latina, da África e da Ásia. Ao passo que os shows se sucedem, fica a pergunta latejando na minha cabecinha tropical. Precisa-se chamar a atenção do mundo? Não parece óbvio? A negativa insiste em responder as minhas questões.


Retomo as duas epígrafes desta seção. Ambas de latinoamericanos, falando no Primeiro Mundo. Uma delas é a “Eztetyka da Fome”, do cineasta Glauber Rocha e a outra é “La soledad de América Latina”, do escritor Gabriel García Márquez. O primeiro foi apresentado em 1965 no “Seminário do Terceiro Mundo” que reuniu cineastas e artistas latinoamericanos em Gênova, Itália. Glauber falou para uma platéia européia, que recebia as palestras com fascínio pelo exótico.


Ele alerta para a existência de uma “cultura da fome”, situação particular da América Latina em relação à Europa. A fome só pode ser sentida, não pode ser compreendida e é a partir dela que a arte se faz. Para o europeu, que olha a América Latina com um sentimento de “nostalgia do primitivismo”, a fome não passa de um “surrealismo tropical”. O Cinema Novo trouxe para a tela a “galeria de famintos”, com seus rostos da miséria e da fome, “personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras” (Rocha, 1981, p. 30). Em oposição aos filmes com “tendência ao digestivo”, que trazem “gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de fluxo: filmes alegres cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais” (Idem). A saída para essa “cultura da fome” é a violência, que não é ódio, pelo contrário, é amor. Não aquele humanista, mas um amor de transformação, de ação, enfim, um amor de revolução.


Para Che Guevara, esse “amor de revolução” é expressado através de seu próprio corpo que se desloca pelos três continentes periféricos e pobres dentro da ordem capitalista. Almeja levar o “socialismo”, visto por ele apenas como “a eliminação da exploração do homem pelo homem”. Em cada parte do mundo, as especificidades culturais devem guiar a luta contra a exploração; cada país, cada continente deve encontrar sua forma de luta.


Gabriel García Márquez, ao aceitar o Prêmio Nobel que lhe foi conferido, traça o histórico das mazelas da América Latina, provocadas pelo domínio europeu e norte-americano. Tem o intuito, assim como Glauburu, de colocar em questão a visão paternalista e exótica do Velho Mundo sobre nós. Como enfatiza, espera que o prêmio seja devido à qualidade de sua poesia, da poesia de Neruda, da poesia latinoamericana e não mais um debruçar caridoso sobre nós. Desloca-se para lá, onde o ar é um misto de triunfo civilizatório e decadência monumental para colocar em xeque as deturpadas visões.


los progresos de la navegación que han reducido tantas distancias entre nuestras Américas y Europa, parecen haber aumentado en cambio nuestra distancia cultural. ¿Por qué la originalidad que se nos admite sin reservas en la literatura se nos niega con toda clase de suspicacias en nuestras tentativas tan difíciles de cambio social? ¿Por qué pensar que la justicia social que los europeos de avanzada tratan de imponer en sus países no puede ser también un objetivo latinoamericano con métodos distintos en condiciones diferentes? (Márquez, 1982, p. 2).


Ambos, Gabo e Glauburu, partem de um lugar latinoamericano para se lançar no mundo. Dissolvem-se, ao mesmo tempo em que se afirmam num “sentimento do mundo”. O que está em jogo, como comenta Geraldo Sarno, ao analisar este texto de Glauber, mas que pode ser estendido ao discurso de García Márquez, é “refundar”, “restabelecer” nossa identidade latino americana frente ao colonizador (Cf. Sarno, 1994, p. 43). Enfim, o que os dois buscam é “superar o subdesenvolvimento com os meios do subdesenvolvimento” (Rocha, 1981, p. 119). Quero dirigir a discussão desse trabalho para o aprofundamento da posição de Glauber sobre nuestra América. Esbarrar com o quijote no alto do farol para ver melhor a chegada dos guerrilheiros cubanos em sua entrada em Havana. Criar visões e mundos possíveis que transformem radicalmente o modo de ver, estar e agir no mundo. “Com o fogo do coração, degelar a América coagulada! Verter, fervendo e latejando nas veias, o sangue nativo do país!” (Martí, 1983, p. 199).

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