segunda-feira, 8 de setembro de 2008

da grande liberação

Friedrich Nietzsche escreve sobre a “grande liberação” no fragmento 3 de Humano Demasiado Humano. Para ele, estamos atados à “deveres” – ou hábitos – e a grande liberação

“vêm súbita como um tremor de terra: a jovem alma é sacudida, arrebatada, arrancada de um golpe – ela própria não entende o que passa. Um ímpeto ou impulso a governa e domina; uma vontade, um anseio se agita de ir adiante, aonde for, a todo custo; uma veemente e perigosa curiosidade por um mundo indescoberto flameja e lhe inflama os sentidos” (Nietzsche, 2005, p.9).

O jovem que vê seu mundo tremer – e desmoronar – desenvolve um desprezo – renega – pelos seus deveres e hábitos. Assim, desperta em seu âmago – como uma dor no peito – um “vulcânico anseio de viagem, de exílio, de afastamento. [...] um olhar profanador para trás, para onde até então amava e adorava” (idem). E justo aí, emerge o perigo que vem e arrasta como a maré. “Um ébrio, íntimo, alegre tremor, no qual se revela uma vitória – uma vitória?” (op. cit, p. 10).

Uma vitória enigmática contra um campo de forças? As leis do mar – a maré – pode arruinar essa vitória – “destruir o homem”. O liberto tenta “demonstrar seu domínio sobre as coisas”, sobre a maré. Atira-se com uma “avidez insaciada”. Ele revira as coisas, revolve o que está encoberto – a areia no fundo do mar –, “experimenta como se mostram as coisas, quando são reviradas”. O poder de revirar tudo lhe seduz, lhe confunde. Se isola, “a solidão lhe cerca e o abraça” – ameaçadoramente – se vê enleado naquela “desordem de suas fantasias” na solidão habitada por seus fantasmas – “quem sabe hoje o que é a solidão?” (idem).

No fragemento 4, Nietzsche afirma que desse “isolamento doentio” o espírito passa por um longo caminho até a madura liberdade do espírito, se orientando pela “vontade de saúde”. Assim, o espírito passa por uma “sensação de liberdade de pássaro”. Neste momento, ele supera os “grilhões de amor e ódio, sem sim, sem não”, da ignorância dos seres sencientes presos entre os apegos e a aversões, segundo a noção budista. Passado isso, o espírito se liberta e contempla, agradecido, suas andanças. “Como foi bom não ter ficado ‘em casa’, ‘sob o teto’, como um delirado e embotado inútil!” (op. cit., p. 11).

O espírito livre deve tornar-se senhor de si mesmo, ter “domínio sobre seu pró e seu contra, e aprender a mostrá-los e guardá-los de acordo com seus fins” (idem). A injustiça acompanha os prós e contras, é a marca de todo “perspectivismo”. Eduardo Viveiros de Castro sustenta: “Se penso, então também sou outro. Pois, só o outro pensa, só é interessante o pensamento enquanto potência de alteridade. [...] ‘só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago’” (Viveiros de Castro, 2008, p. 118). A conclusão é a citação de Oswald de Andrade. O antropólogo revira a antropofagia ao estudar uma tribo tupi – os Araweté. Segundo Viveiros de Castro, são os tupis, herdeiros dos tupinambás, os antropófagos brasileiros, em oposição ao tronco jê, do Alto Xingu, muito mais estudados pelos antropólogos até então.

Seguindo os rastros no ar desprendidos pelos estudos de Oswald, Viveiros de Castro segue o que não é dele, o que não é nosso, aquilo que demanda outras iniciações além da escrita e do pensamento conceitual e abstrato. Segundo Nietzsche, “você deve aprender a perceber o que há de perspectivista em cada valoração. [...]. Você deve aprender a injustiça necessária de todo pró e contra, a injustiça como indissolúvel da vida a própria vida como condicionada pela perspectiva e sua injustiça” (Nietzsche, op. cit., p. 12-3). Assim, cada perspectiva contém o sujeito, a valoração e sua injustiça. A perspectiva é, para Viveiros de Castro, “a afirmação de sua incompatibilidade enquanto ‘melhor perspectiva’” (Viveiros de Castro, op. cit., p. 123).

Um comentário:

Naduska Mário Palmeira disse...

Interessante: demasiadamente humana, eu, tenho o Demasiado humano agora comigo... E busco-me nele!